sábado, 30 de janeiro de 2010

Para mim os dias são cada vez melhores. Acabei por aprender muito bem a lingua e os meus vizinhos, os três do lado e os outros mais distantes, quase me olham como a um deles. Em contato quotidiano com as pedras, os meus pés descalços familiarizam-se com o chão e o meu corpo, quase sempre nu, já não receia o sol. A civilização sai aos poucos de mim e começo a pensar com simplicidade, a alimentar pouco ódio pelo meu próximo, a funcionar animalmente, livremente, com a certeza de que o amanhã é igual ao dia de hoje. Todas as manhãs o sol se ergue tranquilo, para mim como para toda a gente. Faço-me descuidado, sereno e amante.

Que Novidades Há? 1892 "Parau Api" - óleo sobre tela - 67 x 91 cmts.

Mulheres do Tahiti, 1891 (Na Praia) - óleo sobre tela, 69 x 91,5 cmts.

detalhe

O Dia dos Deuses, 1894 "Mahana no Atua" - óleo sobre tela, 66 x 87 cmts.

Gauguin no ano de 1888

Chegamos a Taravao e devolví o cavalo ao gendarme. A mulher deste (uma francesa) exclamou (sem malícia, é verdade, mas sem finura também): - O que? Leva consigo uma meretriz!.. E os seus olhos-cólera despiram a rapariga impassível, que entretanto se tornara altiva. A decrepitude observava a nova floração, a virtude da lei soprava impuramente sobre o impudor nativo mais puro, sobre a confiança, a fé. E, no céu tão belo, descobrí com dor essa nuvem suja de fumo. Envergonhei-me da raça. os meus olhos afastaram-se daquela lama - depressa esqueci - para se fixar no ouro que eu já amava, bem me lembro.

O Espirito dos Mortos Vigia, 1892 "Manao Tupapau" - óleo sobre tela - 73 x 92 cmts.

Trechos da Carta aos senhores inspectores das colonias, de passagem nas Marquesas, fim de 1902, Hivaoa, Ilhas Marquesas: Pretendo apenas pedir que examineis, vós próprios, quem são os indígenas aquí, na nossa colónia das Marquesas, e como funcionam os gendarmes perante eles. A razão é esta: de dezoito em dezoito meses, aproximadamente, e por motivos de economia, é-nos enviada a justiça. O juiz aparece apressado em julgar, nada conhecendo, nada, do que um indígena pode ser. Vendo a sua frente uma cara tatuada, diz consigo mesmo "Aquí está um facínora canibal", sobretudo quando o gendarme interessado lho afirma. O governador Edouard Petit referiu o pintor num relatório que enviou ao Ministro das Colónias, especificando que era necessário desembaraçar as ilhas "dos maus franceses" , "chegados do fim do mundo para alí esconder as infâmias da sua vida" e os "fermentos da desordem". O Juiz chega, portanto, e voluntariamente se instala na gendarmeria, aí toma as refeições, não vendo mais ninguém além do cabo da esquadra que lhe apresenta os processos com as suas apreciações "Fulano e fulano, todos bandidos etc. Veja bem senhor juiz que a não sermos severos com esta gente, acabamos todos por ser assassinados"...

Esboço de "O auto-retrato chamado "Les Misérables'" em uma carta de 8 de outubro de 1888 dirigida ao pintor Schuffenecker

Auto-retrato com Auréola, 1889 - óleo sobre madeira, 79,2 x 51,3 cmts.

Mulher com Manga, 1892 "Vahine no te Vi" - óleo sobre tela, 72,7 x 44,5 cmts.

De um modo geral a população é muito pacífica e só restam as multas para o delito de embriaguêz. Nada possuindo, nada tendo para se distrair, os naturais recorrem em tudo, e por tudo, à bebida fornecida grátis pela natureza, isto é, sumos de laranja, de flores de coco, de banana, etc. fermentados por alguns dias e bem menos prejudiciais que os álcoois da Europa. Depois desta proibição de beber, muito recente, e que suprime um comércio lucrativo aos colonos, o indígena só pensa numa coisa: em beber, fugindo para isso dos centros e escondendo-se em qualquer lado. Daí a impossibilidade de encontrar trabalhadores. Equivale a dizer regresso a selvajaria. O gendarme, esse está no seu elemento: a caça ao homem. Se, por um lado, arranjais leis especiais que os impedem de beber, enquanto os europeus e os negros podem fazê-lo, por outro as suas palavras, as suas afirmações perante a justiça, tornam-se nulas, e é inconcebível que lhes digam que são eleitores franceses, que lhes imponham escolas e patacoadas religiosas. Singular ironia, a desta consideração hipócrita de Liberdade, Igualdade, Fraternidade sob uma bandeira francesa, perante o desolador espetáculo de homens que não passam de carne para contribuições de toda a espécie e para o arbitrário gendarme. No entanto, obrigan-nos a gritar "Viva o senhor governador, viva a República"

O Mercado, 1892 "Ta Matete" - óleo sobre tela, 73 x 91,5 cmts.

Carta a Georges-Daniel de Monfreid, Tahiti, fevereiro de 1897: Mal chegou o correio, sem nada ter recebido de Chaudet, com a minha saúde quase de repente restabelecida, isto é, já sem ter oportunidade de morrer naturalmente, quis matar-me. Fuí esconder-me na montanha, aonde o meu cadáver seria devorado pelas formigas. Não tinha revólver mas possuía arsénico por mim entesourado durante o meu eczema; a dose tería sido demasiada, ou foram os vómitos que anularam a acção do veneno e o rejeitaram? Não sei. Depois de uma noite de sofrimento atroz voltei, enfim, a casa. Durante todo o mês fui assaltado por forte pressão nas têmporas, tonturas, náuseas ao menor alimento. A resolução estava tomada para o mês de dezembro. Mas antes de morrer quis pintar uma grande tela que trazia na cabeça e, pelo mês fora, trabalhei dia e noite numa febre inaudita. Bolas, que não é uma tela feita como um Puvis de Chavannes, estudo ao natural, depois um cartão preparatório, etc. Tudo isso fiz a despachar, a ponta de pincel, numa tela de serapilheira cheia de nós e rugosidades. O aspecto resultou, assim, terrivelmente rude. Dir-se-á que é desleixado, não acabado. É verdade que não nos julgamos bem a nós mesmos mas creio, todavia, que esta tela não só ultrapassa em valor todas as precedentes como não farei outra melhor nem parecida. Antes de morrer, nela empreguei toda a minha energia, uma tal paixão doloroda e em circunstâncias tão terríveis, uma visão de tal forma nítida e sem correções, que o apressado se anula e a vida surge. Não cheira a modelo, a oficina, a pretensas regras que sempre violei, algumas vezes com medo. È uma tela de 4,50 x 1,70 mts, seu título: "De onde vimos? Quem somos? Para onde vamos? Terminei uma obra filosófica sobre este tema comparado ao Evangelho. Creio que está bem. Se tiver força para recopiar, mandá-la-ei.

Mulheres do Tahiti - fotografia -1890

Eu trabalhava febrilmente, duvidando de que não fosse duradoira aquela vontade. Retrato de mulher: Vahinê no te tiarê. Trabalhava depressa e com paixão. Foi um retrato parecido com aquilo que aperceberam os meus olhos velados pelo coração. Acima de tudo julgo que ficou parecido com o interior, esse fogo forte de uma pujança contida. Trazia uma flor na orelha, e esta ouvia-lhe o perfume. Na sua majestade, nas suas linhas sobre-elevadas, o rosto lembrava uma frase de Poe "Não existe beleza perfeita sem alguma singularidade nas proporções"

A Mulher com a Flor (Vahine no te Tiare) 1891 - óleo sobre tela, 70 x 46 cmts.

Auto-retrato dedicado ao amigo Daniel, 1897 - óleo sobre tela - 39 x 35 cmts.

Carta a Charles Morice, Tahiti, julho de 1901: Hoje estou de rastos, vencido pela miséria e, sobretudo, pela doença de uma velhice muito prematura. Terei tempo de terminar a minha obra? Não ouso esperá-lo. De qualquer modo faço um último esforço indo instalar-me no próximo mês, em Fatu-iva, ilha das Marquesas quase antropófaga. Julgo que por lá, com esse elemento tão selvagem, a completa solidão, hei-de ter antes da morte um derradeiro fogo de entusiasmo capaz de rejuvenescer a minha imaginação e arranjar uma conclusão ao meu talento.

Auto-Retrato com Cristo Amarelo, 1889 - óleo sobre tela, 38 x 46 cmts.

Carta a Charles Morice, Atuona, Ilhas Marquesas, abril de 1903: Tal como previa no trabalho que te enviei, sobre a gendarmeria nas Marquesas, acabo de cair numa esparrela dessa mesma gendarmeria e ser condenado. É a minha ruína e un recurso talvez nada valha. De qualquer maneira, é preciso prever tudo e antecipar-me. Bem vês como tinha razão em dizer na carta anterior que agisses depressa e com energia. Se formos vencedores, a luta será bela e terei feito uma grande obra nas Marquesas. Muitas iniquidades serão abolidas e vale a pena sofrer por isso. Estou de rastos mas ainda não vencido. O índio que sorri no suplício está vencido? Decididamente, o selvagem é melhor do que nós. Um dia enganaste-te afirmando que eu não tinha razão ao dizer que era um selvagem. É uma verdade: sou um selvagem. E os civilizados presentem-no, porque nas minhas obras nada haveria de surpreendente ou desconcertante se não fosse o "nao-sei-quê-de-selvagem". Por isso são inimitáveis.

Palavras do Demónio (Eva) 1892 - pastel, 76/5 x 35/5 cmts.

Quando Te Casas?, 1892 "Nafea Faa Ipoipo?" - óleo sobre tela, 101/5 x 77/5 cmts.

Rapariga de Cócoras no Tahiti, 1892 (estudo) lápiz, carvão e pastel , 53/3 x 47/8 cmts.

Carta a Georges-Daniel de Monfreid, Atuona, Ilhas Marquesas, Abril de 1903: Acabo de ser vitima de uma tramóia horrível. Depois de alguns factos escandalosos nas Marquesas, escrevi ao administrador pedindo que fizesse um inquérito sobre o caso. Não pensei que os gendarmes fossem todos coniventes, o administrador do partido do governador, etc... Acontece que o tenente solicitou uma decisão jurídica a um bandido de juiz, às ordens do governador e do procurador que eu atingi, me condenou (lei de julho de 1881 sobre a imprensa) por uma carta particular, três meses de prisão 100 francos de multa. Tenho de ir fazer um recurso ao Tahiti. Viagem, estadia, sobretudo despesas do advogado, quanto me vão custar? É a minha ruína e a completa destruição da minha saúde. Todas estas preocupações me matam. Quando o destinatário recebeu a carta já Gauguin estava morto, desde 8 de maio de 1903.

Música Bárbara, 1891/93 - aquarela sobre seda, 12 x 12 cmts.

Três Tahitianos (Conversa no Tahiti), 1899 - óleo sobre tela, 73 x 94 cmts.

Raparigas com Flores de Manga (Mulheres do Tahiti), 1899 - óleo sobre tela, 94 x 72 cmts.

A Rainha da Beleza, 1896 "Te Arii Vahine" - aquarela - 17,2 x 22,9 cmts.

Auto-Retrato ou Em Golgatha, 1896 - óleo sobre tela , 76 x 64 cmts.

Depois de permanecer 2 anos em França, consumido em saudade do Tahiti
e em sífilis, Paul Gauguin regresou à Oceânia para os 8 anos finais da sua vida. A experiência itinerária do NOA NOA só iria encontrar proplongamento
numas breves páginas sobre o Tahiti e as Marquesas, hoje incluídas como
capítulo autónomo do seu livro Avant et Aprés. Solitário e cego, Gauguin morreu na madrugada de 8 de maio de 1903. A sua cabana foi comprada por um leiloeiro americano. Existe ainda um dado curioso nesse desfecho.
Tempos depois, a sua última tela intitulada "Cachoeira na mata", foi leiloada
"de ponta cabeça", título: "Paisagem na neve"...