O propósito deste blog é o de mostrar o trabalho do ilustrador,independente das regras impostas pelo mercado,nas quatro disciplinas praticadas por mim, em diferentes momentos e veículos: A Caricatura na Imprensa,A Ilustração na Imprensa,A Ilustração Editorial e O Poema Ilustrado. Também são mostradas modalidades diferentes das mesmas propostas como: Montagens das exposições e a revalorização do painel mural, através das técnicas de reprodução digital em baner.
sábado, 30 de janeiro de 2010
Para mim os dias são cada vez melhores.
Acabei por aprender muito bem a lingua e os meus vizinhos,
os três do lado e os outros mais distantes, quase me olham
como a um deles. Em contato quotidiano com as pedras,
os meus pés descalços familiarizam-se com o chão
e o meu corpo, quase sempre nu, já não receia o sol.
A civilização sai aos poucos de mim e começo a pensar
com simplicidade, a alimentar pouco ódio pelo meu
próximo, a funcionar animalmente, livremente, com a
certeza de que o amanhã é igual ao dia de hoje. Todas
as manhãs o sol se ergue tranquilo, para mim como
para toda a gente. Faço-me descuidado, sereno e amante.
Chegamos a Taravao e devolví o cavalo ao gendarme.
A mulher deste (uma francesa) exclamou (sem malícia,
é verdade, mas sem finura também): - O que? Leva consigo
uma meretriz!.. E os seus olhos-cólera despiram a rapariga
impassível, que entretanto se tornara altiva. A decrepitude
observava a nova floração, a virtude da lei soprava impuramente
sobre o impudor nativo mais puro, sobre a confiança, a fé.
E, no céu tão belo, descobrí com dor essa nuvem suja de fumo.
Envergonhei-me da raça. os meus olhos afastaram-se daquela lama -
depressa esqueci - para se fixar no ouro que eu já amava, bem
me lembro.
Trechos da Carta aos senhores inspectores das colonias,
de passagem nas Marquesas, fim de 1902,
Hivaoa, Ilhas Marquesas: Pretendo apenas
pedir que examineis, vós próprios, quem são
os indígenas aquí, na nossa colónia das Marquesas,
e como funcionam os gendarmes perante eles.
A razão é esta: de dezoito em dezoito meses,
aproximadamente, e por motivos de economia,
é-nos enviada a justiça. O juiz aparece apressado
em julgar, nada conhecendo, nada, do que um indígena
pode ser. Vendo a sua frente uma cara tatuada, diz
consigo mesmo "Aquí está um facínora canibal",
sobretudo quando o gendarme interessado lho afirma.
O governador Edouard Petit referiu o pintor num relatório
que enviou ao Ministro das Colónias, especificando que era
necessário desembaraçar as ilhas "dos maus franceses" ,
"chegados do fim do mundo para alí esconder as infâmias
da sua vida" e os "fermentos da desordem". O Juiz chega,
portanto, e voluntariamente se instala na gendarmeria,
aí toma as refeições, não vendo mais ninguém além do
cabo da esquadra que lhe apresenta os processos com as
suas apreciações "Fulano e fulano, todos bandidos etc.
Veja bem senhor juiz que a não sermos severos com esta gente,
acabamos todos por ser assassinados"...
De um modo geral a população é muito pacífica
e só restam as multas para o delito de embriaguêz.
Nada possuindo, nada tendo para se distrair, os
naturais recorrem em tudo, e por tudo, à bebida
fornecida grátis pela natureza, isto é, sumos de laranja,
de flores de coco, de banana, etc. fermentados por alguns
dias e bem menos prejudiciais que os álcoois da Europa.
Depois desta proibição de beber, muito recente,
e que suprime um comércio lucrativo aos colonos, o
indígena só pensa numa coisa: em beber, fugindo para
isso dos centros e escondendo-se em qualquer lado.
Daí a impossibilidade de encontrar trabalhadores. Equivale
a dizer regresso a selvajaria. O gendarme, esse está
no seu elemento: a caça ao homem. Se, por um lado,
arranjais leis especiais que os impedem de beber,
enquanto os europeus e os negros podem fazê-lo, por outro
as suas palavras, as suas afirmações perante a justiça,
tornam-se nulas, e é inconcebível que lhes digam que são
eleitores franceses, que lhes imponham escolas e patacoadas
religiosas. Singular ironia, a desta consideração hipócrita de
Liberdade, Igualdade, Fraternidade sob uma bandeira francesa,
perante o desolador espetáculo de homens que não passam de carne
para contribuições de toda a espécie e para o arbitrário gendarme.
No entanto, obrigan-nos a gritar "Viva o senhor governador, viva
a República"
Carta a Georges-Daniel de Monfreid, Tahiti, fevereiro de 1897:
Mal chegou o correio, sem nada ter recebido de Chaudet, com
a minha saúde quase de repente restabelecida, isto é, já sem ter oportunidade de morrer naturalmente, quis matar-me. Fuí esconder-me
na montanha, aonde o meu cadáver seria devorado pelas formigas.
Não tinha revólver mas possuía arsénico por mim entesourado
durante o meu eczema; a dose tería sido demasiada, ou foram
os vómitos que anularam a acção do veneno e o rejeitaram?
Não sei. Depois de uma noite de sofrimento atroz voltei, enfim, a casa.
Durante todo o mês fui assaltado por forte pressão nas têmporas,
tonturas, náuseas ao menor alimento. A resolução estava tomada para o mês de dezembro. Mas antes de morrer quis pintar uma grande tela que
trazia na cabeça e, pelo mês fora, trabalhei dia e noite numa febre inaudita.
Bolas, que não é uma tela feita como um Puvis de Chavannes, estudo ao
natural, depois um cartão preparatório, etc. Tudo isso fiz a despachar, a
ponta de pincel, numa tela de serapilheira cheia de nós e rugosidades.
O aspecto resultou, assim, terrivelmente rude. Dir-se-á que é desleixado, não acabado. É verdade que não nos julgamos bem a nós mesmos mas creio,
todavia, que esta tela não só ultrapassa em valor todas as precedentes
como não farei outra melhor nem parecida. Antes de morrer, nela empreguei
toda a minha energia, uma tal paixão doloroda e em circunstâncias tão
terríveis, uma visão de tal forma nítida e sem correções, que o apressado se anula e a vida surge. Não cheira a modelo, a oficina, a pretensas regras que
sempre violei, algumas vezes com medo. È uma tela de 4,50 x 1,70 mts,
seu título: "De onde vimos? Quem somos? Para onde vamos? Terminei
uma obra filosófica sobre este tema comparado ao Evangelho. Creio que
está bem. Se tiver força para recopiar, mandá-la-ei.
Eu trabalhava febrilmente, duvidando de que não
fosse duradoira aquela vontade. Retrato de mulher:
Vahinê no te tiarê. Trabalhava depressa e com paixão.
Foi um retrato parecido com aquilo que aperceberam
os meus olhos velados pelo coração. Acima de tudo
julgo que ficou parecido com o interior, esse fogo
forte de uma pujança contida. Trazia uma flor na orelha,
e esta ouvia-lhe o perfume. Na sua majestade, nas suas
linhas sobre-elevadas, o rosto lembrava uma frase de
Poe "Não existe beleza perfeita sem alguma singularidade
nas proporções"
Carta a Charles Morice, Tahiti, julho de 1901: Hoje estou de rastos,
vencido pela miséria e, sobretudo, pela doença de uma velhice muito
prematura. Terei tempo de terminar a minha obra? Não ouso esperá-lo.
De qualquer modo faço um último esforço indo instalar-me no próximo mês,
em Fatu-iva, ilha das Marquesas quase antropófaga. Julgo que por lá, com esse elemento tão selvagem, a completa solidão, hei-de ter antes da morte um derradeiro fogo de entusiasmo capaz de rejuvenescer a minha imaginação e arranjar uma conclusão ao meu talento.
Carta a Charles Morice, Atuona, Ilhas Marquesas, abril de 1903: Tal como
previa no trabalho que te enviei, sobre a gendarmeria nas Marquesas,
acabo de cair numa esparrela dessa mesma gendarmeria e ser condenado.
É a minha ruína e un recurso talvez nada valha. De qualquer maneira, é preciso prever tudo e antecipar-me. Bem vês como tinha razão em dizer na carta anterior que agisses depressa e com energia. Se formos vencedores,
a luta será bela e terei feito uma grande obra nas Marquesas. Muitas
iniquidades serão abolidas e vale a pena sofrer por isso. Estou de rastos mas ainda não vencido. O índio que sorri no suplício está vencido? Decididamente, o selvagem é melhor do que nós. Um dia enganaste-te
afirmando que eu não tinha razão ao dizer que era um selvagem. É uma
verdade: sou um selvagem. E os civilizados presentem-no, porque nas minhas obras nada haveria de surpreendente ou desconcertante se não
fosse o "nao-sei-quê-de-selvagem". Por isso são inimitáveis.
Carta a Georges-Daniel de Monfreid, Atuona,
Ilhas Marquesas, Abril de 1903: Acabo de ser vitima de uma tramóia
horrível. Depois de alguns factos escandalosos nas Marquesas,
escrevi ao administrador pedindo que fizesse um inquérito sobre o
caso. Não pensei que os gendarmes fossem todos coniventes, o
administrador do partido do governador, etc... Acontece que o
tenente solicitou uma decisão jurídica a um bandido de juiz, às
ordens do governador e do procurador que eu atingi, me condenou (lei de julho de 1881 sobre a imprensa) por uma carta particular, três meses
de prisão 100 francos de multa. Tenho de ir fazer um recurso ao Tahiti.
Viagem, estadia, sobretudo despesas do advogado, quanto me vão custar?
É a minha ruína e a completa destruição da minha saúde. Todas estas
preocupações me matam.
Quando o destinatário recebeu a carta já Gauguin estava morto, desde 8 de maio
de 1903.
Auto-Retrato ou Em Golgatha, 1896 - óleo sobre tela , 76 x 64 cmts.
Depois de permanecer 2 anos em França, consumido em saudade do Tahiti
e em sífilis, Paul Gauguin regresou à Oceânia para os 8 anos finais da sua vida. A experiência itinerária do NOA NOA só iria encontrar proplongamento
numas breves páginas sobre o Tahiti e as Marquesas, hoje incluídas como
capítulo autónomo do seu livro Avant et Aprés. Solitário e cego, Gauguin morreu na madrugada de 8 de maio de 1903. A sua cabana foi comprada por um leiloeiro americano. Existe ainda um dado curioso nesse desfecho.
Tempos depois, a sua última tela intitulada "Cachoeira na mata", foi leiloada
"de ponta cabeça", título: "Paisagem na neve"...
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