terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Capítulo XI

detalhe

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Chegavam em carros, coupés, e espalhavam-se pelo jardim,
disputando a sombra das árvores em grupos de homens e
senhoras. o pessoal masculino era soberbo: a nata - Senado,
Cámara, altos tribunais, grandes patentes do Exército e da
Marinha - cartolas reluzentes e negras sobrecasacas a enquadrar
os dourados dos uniformes. Tudo vergado ao sol indiferente e forte.
As senhoras sentiam-se mal, envolvidas naquelas fartas ondas de luz e calor.
Os bosquetes de arbustos tinham uma despreocupação divina e as grandes
árvores nodosas davam uma escassa e compasiva sombra. As lanchas
de aluguel, com bandeiras em que se lia o título do jornal, não tinham
chegado. Eu esperava, afastado do grosso da claque, tímido diante de
tanta grandeza inabalável. Chegou um ministro. Um movimento igual fez todos voltarem-se para o lado em que ele vinha. A atitude foi instantânea
em cada homem e em cada mulher; era como se ao centro de uma porção
de limalha de ferro espalhada, se houvesse chegado um pequeno ímã. /
O doutor Ricardo cumprimentou a alta autoridade e, a seu chamado,
foi-lhe falar. Além do ministro, intermeteu-se uma nova personagem;
um preto velho, quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.
Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de pescaria;
com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a corda,
enquanto balbuciava qualquer cousa. Ia de grupo em grupo, tangendo
o seu monocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma extravagente beleza, certamente só percebida por ele e feita pela sua
alma para a sua alma... Tocava e esperava esmolas. Em todas as
fisionomias, havia decerto piedade, comiseração, e mais alguma cousa
que não me foi dado perceber. Era constrangimento, era não sei o que...
O preto tinha os pés espalmados e, com a cegueira e a velhice, andava
de leve, sem quase tocar no chão, escorregava, deslizava - era como
uma sombra...
Capítulo XIV

Estudo sobre fotografia de Mario de Andrade - Extraida do livro "Turista Aprendiz"

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O carro atravessara o Largo da Lapa e o seu caminho foi interrompido
por uma aglomeração de populares. Da caleça, pude ver o que havia. Era uma mulher das muitas que povoam o largo e proximidades, que ia entre dois soldados. Recordei-me que já tinha visto aquela fisionomia. Esforcei-me
por lembrar. A minha vida começou a desfilar e quando cheguei à casa
da italiana, lembrei-me que era a amante do Deputado Castro. / Perguntei
então a mim mesmo por que não casara aquela rapariga, por que não vivera
dentro dos costumes tidos por bons. Não achei resposta, mas julguei-me,
não sei por que, um pouco culpado pela sua desgraça. / O carro chegou e
eu saltei para ajudar Leda a apoiar-se. Paguei ao cocheiro e, na calçada, ela
perguntou-me: / - Não entras? / - Não, obrigado. / Insistiu varias vezes, mas recusei. Vim vagamente a pé até o Largo da Carioca, sem seguir um pensamento. Vinha triste e com a inteligência funcionando para todos os
lados. Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal.
Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim.
Encontrei Loberant: / - Então? perguntou maliciosamente. / - Deixei-a em casa. / - Pois se eu me tinha separado de vocês de propósito... Tolo!
Vamos tomar cerveja... / Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro muito
estrelado, esquecido de que nossa humanidade já não sabe ler nos astros
os destinos e os acontecimentos. As cogitações não me passaram... Loberant, sorrindo e olhando-me com complacência, ainda repetiu. - Tolo! / Todos os Santos, Rio de Janeiro - 1908