sábado, 15 de julho de 2017

CURSO DE ILUSTRAÇÃO EDITORIAL
O Conto Ilustrado
LUIS TRIMANO
Ilustrações para "O Silêncio Branco" de Jack London
hidrográfica e esferográfica
EL BARCO - Edição virtual 
2017
   

JACK LONDON - San Francisco, Califórnia - Estados Unidos 1876-1916


O SILÊNCIO BRANCO
JACK LONDON
tradução: Olívia Krähenbühl
Ilustrações: Luis Trimano
  

TRIMANO - "O Silêncio Branco"


- Carmen não dura mais que dois dias...
Mason cuspiu um pedaço de gêlo e examinou pesaroso
o pobre animal; depois levou a pata da cadela à bôca
e pôs-se a arrancar com os dentes o gêlo cruelmente
incrustado entre seus dedos.
- Nunca soube que prestasse grande coisa um bicho
com um nome difícil como o dela - acrescentou ao concluir
sua tarefa e empurrando Carmen para o lado. Simplesmente
definham e morrem sob o pêso da responsabilidade 
do nome. 
Já se viu levarem a breca bichos que sensatamente 
se chamam Cassiar, Siwash ou Husky? Creio que nunca,
meu caro. Olhem Shookum; por exemplo...
Safa! A magra alimária saltou, e por um triz seus alvos dentes não se fecharam na garganta de Mason.
- Então é assim, heim? - E uma violenta pancada, desfechada com o cabo do chicote atrás da orelha 
do animal, fê-lo cair espichado na neve, onde ficou tremendo
suavemente, uma baba amarela a escorrer das prêsas.
- Como eu ia dizendo, olhe só para Shookum. Èste sim,
é inteligente. Aposto que vai comer a Carmen antes do fim
da semana.
- Aposto outra coisa - disse Kid Malemute virando o pão
congelado pôsto ao fogo para degelar. - Todos comeremos
Shookum antes do fim da viagem. Que diz Ruth?
A índia clarificou o café com um pedaço de gêlo, relanceou
o olhar de Kid Malemute para o marido, fitou os cães,
mas não se dignou a responder. 
Truísmo tão palpável como aquêle não pedia resposta. 
Duzentas milhas de caminho ininterrupto em perspectiva,
alimento escasso para os três, e que dizer dos cães?
Eram mais seis dias que não deixavam outra alternativa.
Os dois homens e a mulher se agruparam junto ao fogo
e deram início a manducação da magra pitança. Deitados
sôbre a neve, mas ainda atrelados (era uma parada no pino
do dia), os cães fitavam gulosamente cada bocado.
- De hoje em diante não haverá mais almôço - disse Kid
Malemute - E convém não deixarmos de ôlho os cães.
Deram para ficar perversos. Pouco lhes importa derrubar
um sujeito. Questão de oportunidade.
- Já fui presidente de uma Liga Epworth e professor
de Escola Dominical... - E aliviado com a descabida
confidência, Mason mergulhou na sonhadora contemplação
de suas fumegantes mocassinas, quando Ruth o despertou,
enchendo-lhe a xícara.
- Graças a Deus, temos chá aos montes! - continuou. -
Vi êsse chá crescer lá longe, no Tennessee. O que não daria
agora para comer um bolinho de fubá, bem quente! 
Mas não se aborreça, Ruth: nem sempre sofreremos fome,
nem você usará mocassinas por tôda vida...
A isto a mulher se iluminou, e seus olhos transbordaram
de um grande amor pelo seu senhor branco - o primeiro
branco que havia conhecido e o primeiro homem que viu
tratar uma mulher como algo que não era uma alimaría
ou uma bêsta de carga.
- Sim, Ruth - continuou o marido, recorrendo a um jargão
macarrônico, único veículo mediante o qual era possível
se entenderem - espere até pormos em ordem isto aqui
e rumarmos para o Lado de Fora. Embarcaremos no barco
do Homem Branco e flutuaremos na Água Salgada. 
Sim, água  braba, água ruim - grandes montanhas dançando
todo tempo para cima e para baixo. E água tão grande, tão longe, tão longe... Você viaja dez sonos, vinte sonos, quarenta sonos (e gráficamente enumerou os dias nos dedos) - todo tempo água, água ruim. Depois você chega
a uma grande aldeia, cheiinha de gente, um enxame 
de mosquitos no verão... E casas - oh, tão altas, tão altas -
dez, vinte pinheiros - xôte!
E parou sem forças, lançando um olhar suplicante  Kid
Malemute; depois, laboriosamente, por meio de sinais,
pôs os vinte pinheiros um em cima do outro. Kid Malemute
sorria com um jovial cinismo; mas os olhos de Ruth
dilataram-se de pasmo, e de prazer. Meio que acreditava
que seu homem lhe mentia numa condescendência carinhosa ao seu pobre coração de mulher...
- Depois, você entra numa caixa...e puff! vai para cima!
- e, à guisa de ilustração, Mason lançou a xícara para o ar,
apanhando-a com a mesma destreza quando caiu. - E ...piff!
vem para baixo! oh, são grandes feiticeiros! Você vai para
Fort Yukon, eu vou para Arctic City - vinte e cinco sonos -
uma corda comprida, todo o tempo - eu pego a corda -
digo, Aló, Ruth, como cai?, e você diz, "E meu bom marido
que está falando? - e eu digo, "É, sim", - e você diz, "Não
posso fazer pão bom, bicarbonato acabou", - e eu digo,
"Olhe no depósito escondido, debaixo da farinha; até logo". -
Você vai ao depósito e acha montes de bicarbonato. Todo
tempo você em Fort Yukon, eu em Arctic City. Eh, feiticeiros!
Ruth sorriu com tamanha ingenuidade à história maravilhosa, que os dois homens romperam em risadas.
Uma briga de cachorros interrompeu o relato das maravilhas
do Lado de Fora, e quando os ruidosos combatentes
se separaram, ela estalou o chicote sôbre os trenós: tudo
estava pronto para a caminhada.
- Ande, Balby, Você aí! Vamos! - gritava Mason manejando
destramente o chicote; e enquanto os cachorros ganian baixinho sob as trelas, com a sua longa vara de tanger
desentalou o trenó imobilizado no gêlo. Ruth vinha atrás
com a segunda parelha, e Kid Malemute, que ajudara
na partida, fechava a retaguarda. Homem forte, bruto
que êle era, capaz de derrubar um boi de um só golpe,
no entanto não podia ver alguém bater nos animais;
ao contrário, êle os encorajava como raramente fazem os guias de cães; mais que isso, ficava a ponto de chorar
quando os via sofrer.
- Vamos, adiante, vocês aí, seus brutinhos de pés doridos! -
murmurava êle depois de várias tentativas ineficazes para
dar saída ao trenó. 
Mas a sua paciência foi enfim recompensada, e embora
ganissem de dor, os cães se apressaram em juntar-se
aos companheiros.
A conversa caiu: a labuta do caminho não permite essa 
extravagância. E entre tôdas as mortíferas trabalheiras,
a pior é abrir caminho na Terra do Norte. Feliz o homem
que pode arrostar um dia de viagem ao preço do silêncio,
isso mesmo, em trilha batida.
Entre os trabalhos mais penosos, o de abrir caminho 
é sem dúvida o mais duro. A cada paso o enorme sapato palmípede se afunda, até a neve nivelar-se com o joelho.
depois para cima, direito para cima (o desvio de uma fração de polegada é um infalível precursor de desastre), o sapato
tem que levantar-se até a superfície; a seguir, para a frente
e para baixo, e enquanto o outro pé se levanta perpendicularmente, questão de meia jarda. Quem isto
experimenta pela primeira vez, se casualmente evita colocar
os sapatos numa perigosa proximidade e não mede
a distância da base traiçoeira, desistirá, exausto, após uma centena de passos; quem puder ficar um dia inteiro afastado
do caminho dos cães, bem pode, à noite, enfiar-se no seu saco de dormir com a consciência tranqüila e um orgulho
que passa todo entendimento; e o que viaja vinte sonos
na Trilha Comprida é digno de que o invejem os deuses.

TRIMANO - "O Silêncio Branco" - releitura de uma imagem do filme "Viva México" de Serguei Eisenstein


TRIMANO - "O Silêncio Branco"


TRIMANO - "O Silêncio Branco"


A tarde descambou, e com o temor gerado
pelo Silêncio Branco, os mudos viajantes se curvavam em sua faina. A natureza posui muitos ardis para convencer
o homem da sua qualidade infinita: o fluxo incessante 
das marés, a fúria da tormenta, o abalo do terremoto, 
o longo rolar da artilharia celeste. Porém o mais tremendo,
o mais assombroso de todos, é a fase pasiva do Silêncio
Branco. Todo movimento cessa, o firmamento clareia,
os céus são de cobre; o menor susurro se diría 
um sacrilégio e o homem se intimida, apavorado ao som
da própria voz. Única mancha de vida jornadeando 
pelos desertos fantasmais de um mundo morto, êle treme
em face da própria audácia, percebe que a sua é a vida
de um verme, nada mais. Estranhas idéias não evocadas
lhe afloram à mente, e o mistério das coisas luta 
por expressão. É o medo da morte, do universo, subjuga-o -
a esperança na Resurreição e a Vida, o anseio 
de Imortalidade, o vão esfôrço da essência prisioneira -
e é então, ou nunca, que o homem caminha solitário com Deus.
O dia declinou. O rio fêz uma grande curva, e Mason
guiou os cães para o atalho da estreita língua de terra.
Os cães porém recuaram em face da alta ribanceira.
Uma e mais vêzes, enquanto Ruth e Kid Malemute
empurrassem o trenó, os cães escorregaram. Fizeram então
um esforço conjunto. As pobres criaturas, fracas de fome,
empregaram nisso suas últimas fôrças. Subiram - subiram -
e o trenó foi pôsto no alto da ribanceira; mas o líder
sacudiu para a direita a fila de cachorros que vinham atrás,
e que foram abalroar os sapatões de Mason. O resultado,
um desastre! Mason perdeu o pé; um dos cães caiu sob
a trela, e o trenó tombou para trás, arrastando tudo novamente para o fundo.
Lept! e o chicote estalou tàrtaramente, principalmente
em cima do cão que tombara.
- Não Mason! - suplicou Kid Malemute - O pobre-diabo
está morrendo. Espere; atrelemos minha parelha ao seu trenó.
Mason esperou deliberadamente até à última palavra,
mas logo em seguida o comprido chicote tornou a estalar
enrolando-se todo no corpo do pobre animalzinho culpado.
Carmen - (pois era Carmen) - encolheu-se na neve, ganiu
dolorosamente, depois rolou para um lado.
Foi um momento trágico, um penoso incidente da caminhada
- um cão morrendo, dois camaradas enfurecidos... pasava
o olhar solícito de um homem para outro; mas Kid Malemute
se conteve, embora um mundo de censura lhe nadasse 
nos olhos, e, debruçando-se sôbre o cão, cortou-lhe a trela.
Não se disse uma única palavra. 
As parelhas foram dobradas, a dificuldade vencida; os trenós
recomeçaram a andar, com o próprio cão moribundo
arrastando-se na retaguarda. Ninguém mata um animal 
que ainda é capaz de caminhar e uma última oportunidade lhe é concedida: rastejar até o acampamento mais próximo,
se puder, na esperança de algum alce morto.
Já se penitenciando pelo gesto irado, mas por demais
teimoso para pedir desculpas, Mason se afanava à testa
da cavalgada, sem sonhar com o perigo que pairava no ar.
O mato era cerrado no fundo protegido, e por ali iam êles,
varando caminho. A cinqüenta pés ou mais além da trilha
se levantava um altíssimo pinheiro. Fazia algumas gerações que estava ali, e durante gerações o destino tinha isso mesmo em vista - e também, quem sabe? já tivesse decretado o que estava para acontecer.
Mason parara para amarrar a correia solta da mocassina.
Os trenós fizeram uma pausa, e os cães deitaram-se 
na neve sem um gemido sequer.
A quietude era fantasmagórica; nem o mais leve susurro agitava a floresta encrostada de neve; o frio e o silêncio
do espaço exterior enregelaram o coração da natureza,
golpeando-lhe os trémulos lábios. Um suspiro pulsou no ar -
êles porém pareceram realmente não ouvi-lo. 
Tal vez sentissem-no como o presságio de um movimento
no vácuo imóvel. Então a grande árvore, carregada de anos e de neve, desempenhou na tragédia da vida, 
o seu derradeiro papel. 
Mason ouviu o estalido de advertência, ainda tentou saltar,
mas, quase ereto, recebeu o golpe em pleno ombro.
O súbito perigo, a morte rápida - quantas vêzes Kid Malemute os encarara! 
As agulhas do pinheiro ainda tremiam quando êle lançou
a ordem e saltou para a ação. A môça índia nem ao menos desmaiou ou levantou a voz num ocioso lamento, 
como fariam muitas de suas irmãs brancas. 
Ouvindo-o, atirou todo o pêso de seu corpo na extremidade 
de uma alvanca de pau improvisada, atenuando a pressão
e escutando os gemidos do marido, enquanto Kid Malemute
atacava a árvore com a sua machadinha. O aço vibrava
alegremente ao morder o tronco enregelado, e cada batida
vinha acompanhada por uma respiração difícil e audível, o "ha"! "ha"! do homem do mato.
Finalmente Kid estendeu na neve a coisa comovente
que antes fôra um homem. Mais triste porém do que a dor
de seu camarada era a muda angústia no rosto da mulher,
o seu olhar de interrogação entre esperançoso 
e desesperançado. 
Pouco se falou; os do Norte cedo aprendem a futilidade 
das palavras e o valor inestimável dos atos.
Numa temperatura de sessenta e cinco graus abaixo de zero, não pode um homem ficar muitos minutos na neve
e continuar vivendo. Por conseguinte cortou-se a atrelagem do trenó, e o padecente, enrolado em peles, foi deposto
num leito de ramos. À sua frente rugia um fogo feito
com a própria madeira causadora do desastre. 
Atrás, e parcialmente sôbre êle, estendeu-se uma tenda
primitiva - um pedaço de lona que captava o calor irradiado
e fazia-o convergir de volta em cima dêle - 
ardil bem conhecido de muitos que estudaram Física nas fontes.
Homens que partilharam sua cama com a morte sabem
quando o chamado se faz ouvir. Mason ficara horrivelmente
esmagado. O exame mais superficial o revelava. 
O seu braço direito, a perna e as costas se quebraram;
os membros se lhe paralizaram da cintura para baixo;
e era muito grande a possibilidade de existirem machucaduras internas. 
Seu único sinal de vida era um gemido ocasional.
Esperança nenhuma; nada a fazer. A noite impiedosa
se arrastava - o quinhão de Ruth, o desesperado
estoicismo de sua raça, e Kid Malemute acrescentando
novas rugas ao seu rosto de bronze. 
Em verdade, era Mason quem menos sofria, pois julgava
estar no Tennesse oriental, nas Grandes Montanhas
Fumegantes, onde voltava a viver cenas da infância.
Mais comovedor que tudo era a melodia de seu vernáculo
sulista havia muito esquecido, enquanto êle sonhava 
com os peraus onde nadava, com caçadas de gambá
e incursões em plantações de melancia. Isso era grego
para Ruth, mas o Kid o entendia e sentia-o como só 
pode sentir quem ficou muitos anos afastado de tudo quanto
a civilização significa.