domingo, 23 de novembro de 2014

SEBASTIÃO SALGADO - Paraiba, Brasil 1981


SEBASTIÃO SALGADO - Equador 1977


SEBASTIÃO SALGADO - Equador 1978


SEBASTIÃO SALGADO - Equador 1978


CURSO DE ILUSTRAÇÃO EDITORIAL
O POEMA ILUSTRADO
O CÃO SEM PLUMAS
Poemas: João Cabral de Melo Neto
Fotografias: Maureen Bisilliat

Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro 1984


Maureen Bisilliat

Inglaterra 1931
Viajou muito desde criança, vivendo
uma existência  sem raízes culturais
fixas. Iniciou-se na pintura com André
Lhote, em Paris, e prosseguiu seus
estudos no Art Students League, em
Nova Iorque. Estabelecida no Brasil
desde 1952, abandona a pintura em 
1962 e dedica-se a fotografia.
Durante muitos anos fez fotojornalismo
para a famosa revista de Realidade,
o que lhe proporcionou a vivência com
os elementos da terra e do homem 
brasileiros. 
Publicou: A João Guimarães Rosa (1965)
                Xingu / Território Tribal (1979)
                Sertões / Luz e Trevas - sobre
                "Os Sertões" de Euclides da Cunha (1982)
Dedica-se também a elaboração de filmes documentários.
a busca da correspondência entre a realidade, a literatura
e a fotografia, de que resultou este livro, é um de seus focos de interesse.
  
João Cabral de Melo Neto

TRIMANO - João Cabral de Melo Neto - nanquim - Jornal Letras e Artes - 1992


Recife, Pernambuco 1920 - Rio de Janeiro, Brasil 1999
Desde jovem adotou a carreira diplomática, servindo
na Espanha, Inglaterra, Suíça, Paraguai e Senegal.
Foi influenciado pelo Surrealismo e pelo Cubismo, 
preocupado em atingir uma objetividade não contaminada
pela espectativa do sentimental e do pitoresco, na qual
ele vê uma armadilha para a poesia. Em Barcelona, editou
Psicologia da Composição (1947), contra a "poesia dita profunda", e O Cão Sem Plumas (1950).
A imagem do rio Capibaribe como metáfora é o eixo deste
livro, e será retomado em O Rio (1954) e no poema Morte e Vida Severina (1956), formando um tríptico sobre a realidade nordestina, descrita através de substantivos descarnados
e imagens inusitadamente exatas. 
Esse forte rigor semántico irá caracterizar toda a sua obra
como uma grande síntese crítica da realidade existencial,
geográfica, social, moral, e política brasileira. 
Morte e Vida Severina, foi encenado na França pelo Teatro da Universidade Católica (TUCA), e ganhador do Grande Prêmio do Festival de Nancy.    

MAUREEN BISILLIAT


Foram os homens que nos levaram, Audalio Dantas
e eu, para a aldeia de Livramento no Estado da Parahyba
em julho de 1968.
Catadores de caranguejos saíam cedo na primeira luz,
levando suas canoas pelas águas grossas do estuário até
chegar no mangue - moradia, esconderijo e cemitério
marinho do caranguejo - emaranhado de estranhas populações de cabeças carapaças, unhas gordas, e obcenas
desempenhando precipitados lances na diagonal. Arrancados pelos homens da lama, lutam no espaço, mangue pingando mangue revoluteiam no ar.
Os homens sem luvas, pés amarrados com couro de boi
contra as lascas de conchas afundadas no chão,
dispersam-se pelos corredores do mangue apoiados
a raízes suspensas arqueadas em ogivais, nave inchada
e úmida de uma louca catedral. Fumaça de brasa acesa
sai das canecas que os homens levam para protegê-los
dos piuns que, volatizados em nuvem, comem a pele,
ferem o corpo e perturbam o olhar. O sol aparece suavemente, retido às folhas da vegetação. O cheiro de fumo, o cachimbo, a cabaça d'água, o chapeu de palha,
nos devolvem ao mundo, Livrados do mito desaparece 
a visão infernal. Os espíritos se afastam. O homem descansa. Horas passam e as sombras entram pelos corredores do mangue. O mangue inteiro gargareja.
A umidade e o suor correm pelos corpos soltando-se
num único vapor.
Os caranguejos, amarrados a vara por fios de cipó,
testemunham o trabalho feito. Os homens, colocando
suas varas atravessadas nos ombros ensaiam o regresso.
Como marinheiros em terra firme, recobram o equilíbrio
após longo tempo no mar.
No entanto são as mulheres os fundamentos de nossa
história. Entrando em cena o sol caído, contornam o rio
perto do arraial. Cestas balanceadas na cabeça, ondulam
o corpo e pisam, seguras no paso - garças que passam 
gritando alto, periquitos em bando grasnando no ar!
Corri atrás delas mal conseguindo seguir o seu ruidoso
rasto, cambaleando como um corpo sem alma, afundada 
até a cintura na lama, para enfim chegar ao templo do seu
estar. Meninas, mulheres e velhas, com seus vestuários
de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos,
subitamente transformadas em divindades pela lama -
faces polidas de pedra, revestidas das pregas movediças
do mar.
A menina de riso aberto, a beligerância da idade no olhar,
e a mulher de sorriso pálido permanecem imunes ao esforço
embrutecido da velha que, intocada e ausente a seu destino,
arrasta seu corpo gasto pelo chão.

Maureen Bisilliat
São Paulo - outubro de 1984

MAUREEN BISILLIAT


PAISAGEM DO CAPIBARIBE - I

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cántaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes,
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes familias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que estão seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?

João Cabral de Melo Neto

MAUREEN BISILLIAT


MAUREEN BISILLIAT


PAISAGEM DO CAPIBARIBE - II

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira do cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam 
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes 
secam
ainda mais alem
de sua caliça extrema;
ainda mais alem
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapeu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.