segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

CURSO DE ILUSTRAÇÃO EDITORIAL - DIÁRIO GRÁFICO
O Conto Ilustrado
"El Barco" - Edição virtual - Monte Alto - Rio de Janeiro 2018
   
O Homem que Gritou em Plena Tarde
Ignácio de Loyola Brandão
Ilustrações: Luis Trimano
  

TRIMANO - LOYOLA BRANDÃO - O Homem que Gritou em Plena Tarde


Parou para espiar a vitrine. Sapatos e bolsas,
pretos, amarelados, marrons, azuis.
Não estava interessado em sapatos e bolsas.
Olhava por olhar. Passava todos os dias por ali,
cada dia observava uma vitrine, uma loja, um balcão,
um canto. Costumava também olhar para cima.
Assim tinha descoberto coisas que, era uma certeza,
outros não viam. Um beiral antigo, esquecido na fachada
de um prédio. Uma comija. Uma grade, uma janela
com vidros desenhados, vaso de flores, 
gaiola com pássaros, retrato pregado numa veneziana,
números no alto de portais, rostos atrás das vidraças,
aquários. Levava esbarrões, chingos, o que faz aí parado,
seu bestalhão, pô, nesta cidade tem de tudo, até gente
parada de boca aberta. Não ligava, falavam por falar,
para ter alguma coisa contra o que reclamar. Em quanto
admirava a vitrine, ouviu passos. Era a primeira vez 
que prestava atenção no ruído de passos. Virou-se,
observando os pés do povo. Os sapatos batiam 
no calçamento; uns arrastavam os pés; outros saltitavam;
uns pareciam flutuar. O que o impressionava mesmo
era o barulho. Não, não era o barulho, percebeu.
Era o silêncio, dentro do qual os passos sobresaiam.
Um silêncio espesso dentro da tarde. De tal modo
que ele podia, com nitidez, distinguir cada ruído.
O dos passos, o das vozes, o dos murmúrios
(mesmo das pessoas que falavam sozinhas), dos chamados,
das máquinas de escrever por trás das paredes,
dos apitos dos guardas, de nomes gritados, susurrados,
chamados, de músicas que se confundiam, como se 
as letras fossem coisas absurdas, sem sentido algum,
de motores engrenando, funcionando, buzinas, choros,
soluços, zumbidos. Seu ouvido captava e selecionava,
como um aparelho estereofônico, capaz de enviar
para alto-falantes diversos, sons de instrumentos diferentes.
O silêncio pareceu incômodo a um homem acostumado
dentro da cidade barulhenta, irritadiza, insuportável.
O seu dia a dia era constituido quase que por um barulho
só, homogêneo, que se integrara à sua vida.

TRIMANO - LOYOLA BRANDÃO - O Homem que Gritou em Plena Tarde


Algo de que ele dependia, que fazia falta
ao seu organismo. Só conseguia pensar, trabalhar 
com eficiência, dentro daquele conjunto de ruídos
absorventes que lhe davam a certeza de que a cidade
marchava, à pleno vapor, e ele era parte dela,
um acréscimo. E que sem ele, o outro - numa escala
infinita, esta cidade iria parar, quebrando toda a estrutura.
Então, aquele silêncio distinto, imenso vazio dentro da tarde,
provocou nele primeiro um sentimento de desconforto.
Em seguida, veio a insegurança, a dúvida 
sobre sua situação. Estava na sua própria cidade,
ou caíra de repente dentro de um pesadelo?
Quando o homem duvida, o seu mundo cai em ruínas,
desaparecem os pontos de apoio, os suportes familiares
e ele se balança como boneco joão-teimoso.
O desconforto surgiu e ele teve vontade de gritar.
Mas, se gritasse, iriam achar que ele estava louco.
E os loucos são eliminados dos grupos normais.
Mas ele queria gritar. O ar que enchia seu corpo precisava
ser expelido. Sentia-se como o pneu que suporta 
vinte e duas libras e está com trinta e cinco, 
a ponto de estourar. Os músculos do seu peito, a carne toda,
doiam, dentro da tensão. Então gritou. Ouviu o grito
com nitidez dentro do silêncio que abrigava os ruídos
da tarde... Olhou assustado para as pessoas e foi 
como se elas estivessem surdas. Nem se viraram.
Gritou de novo, percebendo que o primeiro grito fora
mais um urro, só para expulsar a massa de ar.
E gritou de frente para uma moça de amarelo.
E a moça gritou. E os dois gritaram juntos, e sorriram.
Viram outros sorrindo.

TRIMANO - LOYOLA BRANDÃO - O Homem que Gritou em Plena Tarde


TRIMANO - LOYOLA BRANDÃO - O Homem que Gritou em Plena Tarde


Gritaram os dois; e eram três. Gritaram os quatro
e eram cinco. Gritaram todas as pessoas naquela quadra.
As que passavam, as que passeavam, as que olhavam
vitrines, as que olhavam para o chão, as que entravam
e saiam dos prédios. Gritavam, e o grito ecoou pela rua.
Foi respondido. Gritaram na esquina. E na outra esquina.
Na praça. Gritaram dentro do ônibus, dos carros, 
no interior dos cinemas e dos escritórios, gritaram
nos mictórios e nas lanchonetes, nos bancos e drogarias.
E no fim da tarde, quando o sol se pôs, mão havia
mais ruídos, nem silêncio, apenas o grito, uniforme,
uníssono, unânime, solidário, de seis milhões de pessoas.
Grito sem fim, enquanto a noite descia.

TRIMANO - LOYOLA BRANDÃO - O Homem que Gritou em Plena Tarde