quarta-feira, 13 de julho de 2016

TRIMANO - Ilustração para "NINGUÉM MORRE JAMAIS" de Ernest Hemingway - hidrográfica e esferográfica


A casa era de gesso cor-de-rosa, já desbotado e se descascando com a umidade. Da varanda via-se o mar,
muito azul, no fim da rua. Havia loureiros em toda a calçada,
loureiros tão altos que faziam sombra na varanda de cima
e refrescavam a casa. Numa gaiola de vime, num canto 
da varanda, vivia um tordo poliglota, que não estava cantando e nem mesmo trilando no momento porque 
um jovem de seus vinte e oito anos, magro, moreno,
com círculos azulados sob os olhos e barba apontando,
tinha acabado de tirar o suéter que vestia e coberto a gaiola
com ele. O jovem ficou parado, a boca ligeiramente aberta,
escutando. Alguém tentava abrir a porta da frente, 
que estava trancada e reforzada com trinco.
Enquanto escutava, o moço ouvia o ruido do vento 
nos loureiros na frente da varanda, a buzina de um taxi
descendo a rúa e gritos de crianças que brincavam num terreno baldio. Em seguida ouviu o ruído de uma chave girando novamente na porta da frente, ouviu a lingüeta cedendo, ouviu alguém forçando a porta contra o trinco;
depois a chave girando ao contrário. Ao mesmo tempo o barulho de um taco de beisebol batendo na bola e gritos
agudos do terreno baldio em língua espanhola.
O moço ficou parado umedecendo os lábios com a língua
e escutando o barulho de alguém agora tentando abrir 
a porta dos fundos.
O jovem, que se chamava Enrique, tirou os sapatos,
pousou-os devagarinho no chão e foi andando na ponta
dos pés pelos ladrilhos da varanda até onde podía ver
a porta dos fundos. Não vendo ninguém lá, voltou para
a frente da casa e, escondendo-se, olhou a rúa.
Um negro de chapéu palheta de aba estreita, paletó
de alpaca cinzenta e calça preta seguia pela calçada
sob os loureiros. Enrique olhou, não viu mais ninguém.
Ficou ali um tempo mais observando e escutando;
depois tirou o suéter de cima da gaiola e o vestiu.
Por ter suado muito enquanto escutava, ele agora sentia
frio na sombra, frio agravado pelo vento de nordeste.
O suéter cobria um coldre de axila onde ele portava um Colt
calibre quarenta e cinco; a sola do coldre já estaba descorada pelo suor, e a arma, com a pressão constante,
produzira um calombo pouco abaixo da axila do rapaz.
O rapaz deitou-se numa cama de lona encostada na parede
e continuou à escuta.
O passarinho trilava e pulava na gaiola. O jovem levantou-se
e abriu a porta da gaiola. O passarinho pôs a cabeça 
para fora da porta aberta e logo a recolheu. Tornou a enfiar
a cabeça para fora, de viés.
- Pode sair - disse o jovem com voz mansa. - Não é cilada.
Enfiou a mão na gaiola, o passarinho voou para o fundo,
batendo as asas nas talas.
- Você é bobo - disse o jovem. Tirou a mão de dentro da gaiola. - Vou deixá-la aberta.
Deitou de bruços na cama de lona, o queixo apoiado nos braços dobrados. Continuava escutando. Ouviu o pássaro
voar da gaiola e logo cantando num dos loureiros.
Foi tolice deixar o passarinho preso quando a casa está
supostamente desocupada - ele pensou - Tolices como essa
podem ser perigosas. Como posso censurar outros
quando eu também procedo assim?
No terreno baldio os meninos ainda jogavam beisebol,
e a temperatura caíra. O jovem desabotoou o coldre,
tirou a arma e deixou-a ao lado da perna. Logo dormiu. 
Quando acordou já estava escuro, e as lámpadas da rúa
já estavam acesas. Levantou-se e foi à frente da casa,
mantendo-se na sombra e ao abrigo da parede. Examinou
um lado da rúa, depois o outro. Debaixo de uma árvore
na esquina estava um homem de chapéu palheta de aba
estreita. Enrique não conseguia distinguir a cor do paletó
nem a da calça, mas o homem era negro.
Enrique correu para o fundo da varanda, mas lá não havia luz, a não ser a das janelas do fundo de duas casas vizinhas. Podia ver muita gente no fundo. Deduziu isso
porque não ouvia agora como ouvira de tarde, e não ouvia
porque tinha um rádio ligado na segunda casa.
De repente o crescente gemido mecânico de uma sirene
cortou o ar, e o jovem sentiu um arrepio subir até o alto da cabeça. Esse arrepio veio involuntariamente e rápido,
como acontece quando uma pessoa fica corada. Foi como
um fogo pontudo, que desapareceu também rapidamente.
A sirene viera do rádio, fazia parte de um comercial,
e logo veio a voz do locutor: "Dentifrício Gavis. Inalterável, insuperável, imbatível."
Enrique sorriu no escuro. Estava quase na hora de alguém aparecer.
Depois da sirene no anúncio de dentifrício veio o choro de uma criança que o locutor disse que deixaria de chorar
com Malta-Malta. Depois uma buzina de carro e um motorista exigindo gasolina verde. "Não me venha com conversa. Pedi gasolina verde. Mais econômica, rende mais.
A melhor."
Enrique sabia os anúncios de cor. Não tinham mudado
durante os quince meses que ele passara na guerra.
Deviam estar utilizando os mesmos discos na estação 
de rádio, e a sirene o enganara mais uma vez, dando-lhe
aquela picada rápida espinha acima até o alto da cabeça,
que é a reação automática a um perigo.
No princípio ele não tinha esses arrepios. O que sentia 
diante de um perigo ou do medo do perigo era um vazio
no estômago. Depois uma fraqueza como quando se está com febre. E havia também a incapacidade de ação, quando é preciso forzar o movimento para a frente e as pernas parecem paralizadas, como que dormentes.
Essas situações não aconteciam mais, e ele agora fazia
sem dificuldade o que fosse preciso. O arrepio era o único resquício da enorme capacidade de sentir medo com que
muitos bravos começam. Era a única reação perante
o perigo que lhe restava, sem incluir o suor do qual jamais 
se livraria, mas que por outro lado lhe servia de alerta. 
Enquanto olhava a árvore onde o homem de chapéu palheta
agora parecia sentado no meio fio, uma pedra caiu no piso de ladrilho da varanda. Enrique procurou por ela colado
à parede, mas não a achou. Passou a mão embaixo da cama de lona, onde também não estava. Quando ficou de joelhos para procurar melhor, outra pedra caiu no piso,
saltou e foi rolando para a esquina lateral da casa, 
que dava para a rúa. Enrique apanhou-a. 
Era um seixo liso comum, que ele guardou no bolso,
e voltou para dentro da casa e desceu os degraus
para a porta dos fundos.
Encostou-se de um lado do portal e tirou o Colt do coldre.
- A vitória - disse baixinho em espanhol, a boca resistindo à palavra, e passou de mansinho com os pés descalzos para o outro portal.
- Para os que a conquistam - alguém disse lá de fora.
Era voz de mulher dando a segunda parte da senha
em ritmo rápido e vacilante.
Enrique correu o trinco duplo da porta e abriu-a com a mão
esquerda, o Colt ainda na direita.
Quem estava lá no escuro era uma moça com um cesto
na mão. Tinha um lenço na cabeça.
- Olá - disse ele. Fechou a porta e passou o trinco
depois que ela entrou. Ouvia a respiração da moça no escuro. Tomou o cesto da mão dela e acariciou-a no ombro.
- Enrique - ela disse. Ele não podia ver que os olhos dela
brilhavam e nem como estava o seu rosto.
- Vamos lá para cima - disse ele - Tem alguém vigiando a frente da casa. Você viu?
- Não. Vim pelo terreno baldio.
- Vou lhe mostrar o sujeito. Vamos à varanda de cima.
Subiram a escada, Enrique com o cesto. Ele o depositara 
perto da cama e fora para o canto da varanda. O negro
de chapéu palheta de aba estreita não estava mais lá.
- Ora, ora - disse Enrique.
- Ora o quê? - perguntou a moça segurando o braço dele e olhando para fora.
- Ele foi embora. O que é que temos para comer?
- Tive pena de deixar você sozinho o dia inteiro - disse ela
- Foi bobagem minha esperar que escurecesse para vir.
Passei o dia todo com vontade de vir.
- Foi bobagem ficar aqui. Trouxeram-me de barco para cá
antes do amanhecer e me deixaram com uma senha
e nada para comer, numa casa vigiada. Ninguém come senha. Não deviam ter me deixado numa casa que está vigiada por outros motivos. É coisa muito de cubano.

Antigamente pelo menos tinhamos o que comer. E você
como vai Maria?
Ela beijou-o na boca sofregadamente. Ele sentiu a presão
dos lábios dela e o tremor do corpo encostado no dele,
e de repente a picada branca de dor na espinha. 
- Ai! Cuidado aí.
- Que foi?
- Minhas costas.
- O que é que tem? Está ferido?
- Você devia ver - disse ele
- Posso ver agora?
- Depois. Precisamos comer e sair daqui. 
O que é que guardavam aquí?
- Muitas coisas. Coisas que sobraram do vexame de abril.
Coisas guardadas para o futuro.
- O futuro distante - disse ele. - Não sabiam que a casa estava vigiada?
- Tenho certeza que não
- O que é que tem aí?
- Uns fusis encaixotados. E caixotes de munição.
- Tudo deve ser retirado esta noite. Só depois de anos
de trabalho é que vamos precisar dessas coisas.
- Gosta de escabeche?
- Muito bom. Sente aqui perto de mim.
- Enrique - disse ela sentando-se encostada nele.
Pôs a mão na perna dele e com a outra acariciou-o na nuca
Meu Enrique.
- Pegue leve - disse ele mastigando, - As costas doem.
- Está contente de ter voltado da guerra?
- Nao pensei nisso.
- E Chucho, como está?
- Morreu em Lérida.
- E Felipe?
- Morreu. Também em Lérida.
- Arturo?
- Morreu em Teruel
- E Vicente? perguntou ela com voz monótona,
as duas mãos agora na perna dele.
- Morreu. No ataque da estrada de Celadas.
- Vicente é meu irmão. - Ela esticou o corpo
e tirou as mãos da perna dele.
- Eu sei - disse Enrique, e continuou comendo.
- É meu único irmão.
- Pensei que você já soubese.
- Não sabia, e ele é meu irmão.
- Sinto muito, Maria. Eu devia ter dito de outra maneira.
- Ele realmente morreu? Você tem certeza? Não seria
uma notícia sem confirmação?
- Olhe, Rogello, Basilio, Esteban, Felo e eu estamos vivos.
Os outros morreram.
- Todos?
- Todos.
- Não me conformo. Desculpe, não me conformo.
- Não devemos ficar falando nisso. Morreram.
- Não é só porque Vicente é meu irmão. Posso aceitar a morte dele. Eram a flor do nosso partido.
- Eu sei. A flor do partido. 
- A guerra não valia isso. Ela destruiu os melhores.
- Valia, sim.
-Como pode dizer isso? Chega a ser criminoso.
- Não é não. A guerra valia sim.
Ela chorava e Enrique continuava comendo - Não chore -
ele disse. - O que temos a fazer agora é nos esforçarmos para ocupar os lugares deles.
- Mas ele é meu irmão. Você não entendeu ainda? 
Meu irmão.
- Somos todos irmãos, Alguns morreram, outros estão
vivos. Nos mandaram de volta para que sobrassem alguns.
Do contrário não sobraria ninguém. Agora temos que trabalhar.
- Mas por que morreram todos? 
- Estávamos numa divisão de ataque. Neste caso ou se morre ou se é ferido. Nós outros fomos feridos.
- Como foi que Vicente morreu?
- Foi apanhado por fogo de metralhadora quando atravessava a estrada. O fogo veio de uma fazenda à direita.
A estrada estava coberta pelas metralhadoras instaladas na casa.
- Você estava lá?
- Estava. Com a primeira companhia. Estávamos à direita dele. Tomamos a casa mas demorou. 
Tinham três metralhadoras lá, duas na casa e uma 
no estábulo. Era difícil aproximar-se. Tivemos que pedir um tanque para incendiar a janela e só assim pudemos atacar o último ninho de metralhadoras. Perdi oito homens. Foi uma perda alta.
- Onde foi isso?
- Celadas
- Nunca ouvi falar
- A operação fracassou. Ninguém vai ouvir falar nela.
- Foi aí que Vicente e Ignacio morreram.
- E você acha isso justificável? Que homens como eles morram em operações fracassadas num país extrangeiro?
- Não existe país extrangeiro, Maria, onde se fala espanhol.
Onde se morre não tem importância para quem luta pela liberdade. Mas seja como for, o que precisamos fazer é viver
e não morrer.
- Mas pense em quem morreu, longe de casa, e em operações fracassadas.
- Não foram lá para morrer, foram para lutar. Morrer é
um acidente.
- Mas os fracassos. Meu irmão morreu num fracasso.
Chucho morreu num fracasso. Ignacio también.