segunda-feira, 5 de março de 2018

CURSO DE ILUSTRAÇÃO EDITORIAL
O Conto Ilustrado
TRIMANO
Ilustrações para "Diários" de Jack Kerouac
hidrográfica e esferográfica
"El Barco" - Edição virtual - Monte Alto - Rio de Janeiro 2018 

TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS"


ARIZONA
trecho
   
Algumas noções: em Wickenburg, em 1947, apesar
de ser um dia quente, seco & ensolarado no deserto,
vi um homem com sua mulher e filhos em uma carroça
pequena arrastando árvores em seu quintal, à sombra
de muitas árvores; de repente, era uma especie de Arizona feliz. Tudo foi confirmado mais tarde quando viajei 
por Prescott, no desfiladeiro Oak Creek, e fui a Flagstaff,
no meio da floresta, onde, nos ares altos da floresta
que descortinavam à distância longínquos horizontes
desérticos, é possível sentir a alegria peculiar da região
dos cânions, região alta, região de florestas: uma espécie
de felicidade das montanhas (não é lógico que o modo
de cantar tirolês tenha se originado nas montanhas?).
Ao cruzar o rio Colorado perto de Indio, você vê
uma Arizona de desolações... especialmente perto
de Salome... um deserto, com um barraco a um kilômetro
da estrada a cada 50 kilômetros, mais ou menos,
e cidades de entroncamentos - e bem longe as montanhas
mexicanas onde o monstro gila cantava para si mesmo;
e algarobeiras, buracos de marmota, cactos, montanhas
rochosas, planaltos solitários à distância.
Nas montanhas perto de Benson há uma espécie
de paraíso ao amanhecer - ares frescos purpúreos;
encostas avermelhadas; pastos esmeraldas nos vales;
o orvalho; as nuvens douradas se transmutando.
Tucson fica em uma região de uma bela algorobeira,
plana e com um leito de rio encimados por serras nevadas
como a de Catalina. As pessoas são efêmeras, selvagens,
ambiciosas, ocupadas, alegres; animação & promesas
de muito mais animação no centro; é "californiana".
Fort Lowell Road, seguindo as árvores no leito do rio,
é um longo jardim verde na planície de algorobeiras.

tradução: Edmundo Barreiros

TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS"


TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS" - Releitura de escultura de Antoine Bourdelle


TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS"


trecho

Lá eu durmo numa plataforma ferroviária de carga -
Carona numa carreta que levava feijão-fradinho em sacas,
paramos para ajeitar a carga sob o "encerado", como eles
chamam aquilo. Passamos por Beaumont e chegamos 
em Baton Rouge - Uma estrada quente e ensolarada.
Chupo o sorvete de um copinho, arranjo uma carona
até o Mississippi com um agradável morador do Mississippi -
Muitas caronas curtas pela noite, cidadezinhas, até chegar
em Jackson, Missouri. - Um sujeito pega outro caroneiro,
um garoto louro estranho e pálido que está voltando
de um encontro de renascimento de Billy Graham! - No meio
da noite, vejo-me na sonolenta cidade de Newton, Miss,
sem posibilidade de carona. Não havia qualquer trânsito.
Fiquei sentado no meio-fio naquela noite quente de verão,
triste, tentei dormir na minúscula rodoviária, sentado com a cabeça sobre minha bolsa. - Pela manhã, um belo desjejum
renova minhas forças (Comi com tanto apetite 
que os turistas ficaram olhando para mim, panquecas & ovos
& torradas!) Bam, uma carona repentina de um senhor
elegante, meio hip, em um carro novo, que me leva até 
a Georgia, passando por Montgomery & Tuscaloosa, Alabama, onde ele me paga uma bela refeição de broa de milho sulista com feijão-fradinho etc. (restaurante ótimo em uma estrada sinuosa do interior), e depois seguimos adiante e paramos no trevo da Tobacco Road para tomar uma cerveja entre os estranhos brancos pobres da Georgia,
engraçado! - então seguimos para Florence, Carolina do Sul,
ao anoitecer fim da carona, carona longa. De lá faço
um interurbano para mamãe & volto a pedir carona, conseguindo a última com o gordo e grande Walter Brown
de Baltimore, que ia se arrastando a 50 km/h por entre
os pántanos da C. do N. e do sul da C. do N. (parando
à meia-noite em um restaurante com uma garota de dez
anos que tocava "Rocket 69" na vitrola automática),
& Montanhas Rochosas ao amanhecer - Faminto! Exausto!
Grato! Duro! Desolado! Em casa!

tradução: Edmundo Barreiros

TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS" - Retrato de Jack Kerouac


TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS"


RUMO AO OREGON
ESCRITO NUM RESTAURANTE MEXICANO
EM PORTLAND 
trecho

De San Francisco a Portland (1.123 quilômetros) 4 e 5 de fev. de 49

Despedida boba e sem graça com Neal e Louanne
depois de uma noite em Richmond, Calif, num bar de putas
e jazz selvagem com Ed Saucier & Jan Carter (baterista) -
(a maconha; Pip jogada na cadeira; as garotas parecidas
com Billy Holliday; e "Cale a boca!"). Adeus na rodoviária
da 3º St. - Greyhound. Oakland. Dormi por todo o vale
de Sacramento, passando por Red Bluff etc. (O mesmo
que San Joaquin?) acordei as 7h em Reddong. Frio - morros
com arbustos brancos por toda parte; ruas vazias... Subi
pelo lago Shasta, passando por Buckhorn & pelas montanhas Hatchet - uma paisagem espetacular 
do Nordeste, com muitas árvores e neve... (Hal uma vez
disse que era igual ao Colorado.) O fantasmagórico monte
Shasta à distância... Lagos nas montanhas; o céu azul altaneiro dos ares da montanha. Lamoine... barracos
ao longo da ferrovia; espaços abertos. Atravessei montanhas
espetaculares e cristas cobertas de florestas até Dunsmuir -
cidadezinha madeireira com estação ferroviária 
nas montanhas (monte Shasta e as neves andantes).
O shasta namorado pelas nuvens - uma estreita cidadezinha
na encosta, & neve. A visão de um menininho; quadra
de basquete na escola, pai funcionário inferior da ferrovia
deprimido; noite de Natal; o vagar dos fantasmas da neve
de Shasta; o espírito do Grande Xamã Tolo que o leva 
à mulher amortalhada de branco na encosta. (Como
os expectros fantasmagóricos exibem-se sem vergonha 
em pleno dia azul, lá em cima, não esperam sequer
pelo cair da noite. - Mas a NOITE também chega...)
Seguindo para o monte Shasta (uma jovem esquiadora
tola). E então uma vegetação assustadora... "O que ele
faria lá?" (referência a "Ratos e Homens", 1937, de John Steinbeck) O grande albergue diante de espaços vazios
ao norte e dos trens cargueiros cheios de carvão, 
neve & frio - Homens no hotel. Pinheiros da montanha.
Cidade desolada e soturna.

tradução: Edmundo Barreiros 

TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS"


TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS"


trecho

O Missouri desemboca enorme nas águas do Mississippi
em St. Louis, levando o tronco em sua odisséia dos ermos
de Montana até as noites e as margens de Hannibal, Cairo,
Greenville, e Natchez... e passamos pela velha Algiers,
de Louisiana (onde, agora, está Bill Burroughs).
"Uniões!... É isso o que são! - Uniões!"
Minha balsa singra as águas marrons até New Orleans;
olho por sobre a amurada; e lá está aquele tronco 
de Montana passando... Como eu, um andarilho 
em obscuros leitos de rio, movendo-se lentamente
com satisfação e eternidade. À noite, na noite chuvosa...
Mas o Mississippi - e meu tronco - passa em sua jornada
por Baton Rouge, onde, quilômetros a oeste, algum
fenômeno subterrâneo sobrenatural criou os bayoux (pánta-
nos e regiões alagadas da Louisiana) quem sabe? - a oeste
de Opelousas, sudeste de Ogallala, sudoeste de Ashtabula -
e lá nos bayoux, também (e portanto), através do paciente 
olho da minha alma flutua o espectro das brumas, 
o fantasma, a feiticeira do pântano, a luz da noite, o sudário
de névoa que cobre o Mississipi e Montana e toda a terra
assombrada; para trazer-me a mensagem do tronco.
Espírito por espírito essas formas de bayoux nadam 
pela noite pantanosa, de palácios musgosos, da mansão
da serpente; e li o manuscrito extenso e elaborado
da noite.
E o que é o rio Mississippi? É o movimento da noite; 
e o segredo do sono; e o mais vazio dos rios americanos
que carregam (da mesma forma que o tronco é carregado)
a história de nossa fúria mais verdadeira: - a fúria da alma
mortal e nociva que nunca dorme... E diz à noite, "Sabe que
isso é o que sempre sinto? Eu sei? Você sabe? Quem sabe?
Mas isso é vago... mentiroso. (Um aperto no estômago.)
O rio Mississippi termina na noite plausível do golfo (chamado de México): e o meu tronco rachado e errante,
encharcado, parcialmente afundado e virado pelo peso
da água em seu interior, flutua para o mar... ao redor
dos recifes... onde o barco oceânico (como uma balsa eterna) passa uma vez mais por seu estranho destino
como um espectro. E o velho Bill está sentado sob a luz
(lendo os diários de Franz Kafka), enquanto eu, um poeta
descuidado, um olho, um homem, um espectro, um vigia
de rios, da noite; panorama e continentes (e de homens e mulheres); rabisco em San Francisco.
Pois a chuva é o retorno do mar, e do rio - não do lago -
é a chuva tornando-se noite, e a noite é água e terra,
e não há estrelas que mostram à amortalhada terra suas
curvas e dobras em outros mundos que não precisamos
mais: eu sei (e escrevo).
E a noite chuvosa, um rio, è Deus, como o mar os rios e chuvas ocultam. Tudo é seguro. E garantido
                                ___________________

Irei um dia ver meu mar na curva do rio? Ou apenas rolarei
para ele à noite, em silêncio: o golfo do México
é uma eternidade.

tradução Edmundo Barreiros      

TRIMANO - KEROUAC: "DIÁRIOS" - Retrato de William Burroughs