quinta-feira, 17 de março de 2016

MOBY DICK


QUEEQUEG HOMEM DE CARÁTER
trecho

Que estranho tipo, meus amigos! Tinha uma cor terrosa,
mas bem escura, num rosto sulcado de pequenos 
quadradinhos negros. Era, como eu já imaginara, 
um espantoso companheiro de quarto. Pensei que
por causa de algum combate, aquêle sujeito tivesse
passado pelas mãos de um cirurgião. A princípio julguei
que aquêles quadradinhos negros fôssem esparadrapos
ou coisa parecida, mas logo a luz da vela bateu-lhe
em cheio no rosto, e vi que mais pareciam tatuagens.
Èle tinha uma cabeça mais calva do que o ôvo
de uma avestruz. Para torná-la ainda mais exótica,
caía-lhe sobre a testa uma única mecha em forma de trança.
 

MOBY DICK


MOBY DICK


O ESTRANHO CAPITÃO ACAB
trecho

Na verdade não parecia apresentar nenhum indício
de moléstia séria e nem tinha o aspecto de um convalescente. No meu modo de ver, pareceu-me um homem livrado de uma fogueira quando as chamas
já atingiam seus membros. Todo êle parecia ser feito de bronze fundido, e uma cicatriz sulcava-lhe os cabelos
grisalhos e emaranhados, atravessava em linha reta um lado do rosto e perdia-se no pescoço, por baixo do blusão de navegante.
O seu aspecto estranho e a marca lívida em seu rosto
desconcertaram-me tanto, que mal notei que a rigidez 
da sua posição era motivada por uma estranha perna branca, em que se apoiava. Eu tinha ouvido falar de que o mar lhe fornecera tal membro, e não era outra coisa
senão o osso bem polido de uma forte mandíbula
de cachalote.
Chocou-me, extraordinàriamente, a estranha posição 
adotada por êle. De cada lado do castelo de proa 
do Pequod, muito perto dos ovéns da mezena, havia uns buracos de meia polegada de profundidade nas tábuas.
Pois bem, a perna de osso de Acab estava fincada
num dêsses furos e êle permanecia firme e bem aprumado
com o seu braço direito erguido e a mão agarrada a um ovém, os olhos fixos para além do limite da proa, 
que oscilava incessantemente ao sabor das ondas. O que
havia de estranho naquele olhar? De imediato, uma energia
indomável e uma inteireza infinita como o horizonte marítimo.  
 

MOBY DICK


MOBY DICK E AS SUPERSTIÇÕES
trecho

É pouco provável, creio eu, que o ódio alimentado
por Acab ou, melhor dizendo, sua terrível idéia fixa
tivesse surgido no exato momento da amputação da sua perna. Quando se lançara armado de punhal sôbre a baleia,
não fizera mais do que deixar-se arrastar por uma repentina
animosidade. No momento em que Moby Dick cerrara
sua mandíbula torcida prendendo a perna do capitão,
êste não sentiria com tôda a certeza mais do que a dor física inevitável. Mas, então, não podia pensar direito. O pior viria
depois, quando o velho lôbo-do-mar se sentiu afastado 
do seu navio, retido em terra firme, num longo período 
de cura  onde a dor o impediu de refletir direito 
por semanas e meses inteiros. Teria mesmo enlouquecido,
como o demonstra o fato de, durante a travessia de regresso, seus oficiais terem de amarrá-lo no seu próprio
beliche... Só ao término de muitos dias pareceu serenar um pouco. E quando apareceu no convés, outra vez, para retomar o comando do seu navio, Acab, ao contrário do que supunham os tripulantes, estava convencido de que continuava louco, louco para atacar algo que só êle sabia
o que era. Aparentemente o velho capitão parecia, em certas ocasiões, sereno e normal. 
Mas, sob a máscara de uma lucidez aparente, demonstrava
maior obstinação íntima para alcançar o fim 
que se propunha.

MOBY DICK


MOBY DICK


OS MALAIOS FANTASMAS
trecho

Partiu então um leve assobio do bote: era o arpão
que Queequeg acabava de atirar. Então recebemos 
um formidável empurrão pela pôpa, enquanto que à proa
parecia que o bote se chocara bruscamente com um recife. 
A vela soltou e caiu, e um jato de vapor ardente veio até nós, enquanto algo confuso e informe, revolvendo-se violentamente, abanou a pequena embarcação como se
esta fosse de papel. Quando quisemos ver o que tinha acontecido achávamo-nos mergulhando como desesperados
no meio daquele fantástico turbilhão formado pela água, o bote virado e a baleia. E, como o arpão só conseguira roçá-la levemente, pôde escapar bem adiante de nossas próprias barbas...
A pesar do bote estar virado, verificamos satisfeitos
que não tinha sofrido avaria alguma. Nadando à sua volta,
recolhemos os remos que flutuavam a deriva e, precipitando-nos para cima da borda, saltamos, novamente,
para nossos lugares, onde ficamos sentados com água
até os joelhos. Parecíamos instalados sôbre um caprichoso
banco de coral vindo até nós das profundezas do mar.
  

MOBY DICK


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A BALEEIRA "TOWNHO"
trecho

Antes que o alarma chegasse à pôpa, Steelkit
já alcançara um dos cabos que levavam até os cêstos
das gâveas, onde se encontravam de vigia dois canaleiros,
isto é, homens ferozes que operam como barqueiros
nos grandes canais, como o do Erié.
Mas, logo que subiu pelo cabo, viu-se rodeado pelos outros
oficiais de bordo e vários arpoadores, que se dispunham a prendê-lo. Nesse exato momento intervieram os dois canaleiros amigos de Steelkit. Deslizando-se pelo cabo ràpidamente, como serpentes, os dois se lançaram em defesa do perseguido, procurando levá-lo para a proa.
Uniram-se a êles varios marinheiros e armou-se uma confusão de meter medo, de tal ordem que o capitão,
prudentemente a distância, armou-se com uma lança,
dando ordens aos seus oficiais para que prendessem 
aquêle gigante e o encarcerassem no porão. Era mesmo
muito engraçado ver como, de vez em quando, o capitão
se aproximava do foco da briga e, espreitando por entre
aquela confusão de pernas e braços, procurava tocar 
com a lança o homem que julgava ser o chefe do motim.
Mas Steelkit e os seus companheiros lutavam pra valer,
e a murros e empurrões abriram caminho até a coberta
da proa, onde derrubaram alguns barris para improvisar 
uma trincheira.   
 

MOBY DICK


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A BALEEIRA "TOWNHO"
trecho

Depois de algumas remadas enérgicas o bote em que ia 
Steelkit conseguiu aproximar-se da baleia. De pé à proa,
Radney segurava a lança e parecia realmente outro homem
nesses instantes de luta selvagem. Apesar de estar ainda com o maxilar em mau estado, o primeiro-oficial soube dar
em tom firme a ordem de investir e atacar diretamente 
a baleia pelo flanco e depois pelas costas. Steelkit remava
com energia e bom ritmo, a pesar de aquêle bote ser arrastado, violentamente, por entre verdadeiras montanhas de espuma que chegavam a toldar-lhe a visão momentâneamente. Mas, de súbito, o bote esbarrou
em algo duro e contundente e Radney foi lançado à água.
No mesmo instante de supremo perigo emergia o lombo escorregadio da temível baleia, junto da qual foi parar o primeiro-oficial. O bote ergueu-se então perigosamente,
desviando-se do caminho do monstro marinho devido
ao choque das ondas. Radney começou a nadar desesperadamente, e da embarcação via-se, 
de vez em quando, emergir com grande esforço por entre
a espuma, lutando sem cessar para manter-se fora
do alcance da baleia gigante. Mas esta voltou-se rápidamente e, prendendo o náufrago entre as suas mandíbulas, submergiu sem deixar rastro.
  

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RUMO À ILHA DE JAVA
trecho

Há um mundo de superstições entre os marujos
e a contemplação do grande polvo vivo
figura entre elas. Contra o que muitos marinheiros dizem,
é visto raramente, e, embora todo mundo afirme
que se trata de um dos exemplares maiores do oceano,
são bem poucos os que alimentam idéias mais ou menos
claras a respeito dos movimentos e estrutura do monstro.
Em certas ocasiões, quando é perseguido de perto,
expele pelas suas fauces o que se supõe que sejam
os seus próprios tentáculos cortados, pois o polvo gigante
é o mais encarniçado inimigo do cachalote. A luta entre
ambos é tremendamente feroz, demorada, e em tais duelos
sangrentos costumam mutilar-se de maneira selvagem. 
 

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TASHTEGO E DAGGOO
 trecho

Já vários barris tinham sido enchidos, quando ocorreu
um estranho acidente. Não se pode saber ao certo
se fôra uma falha de Tashtego, que, na sua temeridade,
tivesse soltado, por um instante, as cordas da roldana
a que se agarrava, ou porque o lugar onde êle se encontrava fôsse escorregadio... O certo é que, quando era alçado
o último balde com espermacete, o índio caiu no interior da grande cabeça da baleia, desaparecendo após impressionante gorgolejo.
- Homem ao mar! - gritou Daggoo. - Ajudem-me!
Quando o gigantesco arpoador fazia um grande esfôrço
para soltar o "chicote" ouviu-se o ruído de um violento rasgão e, ante o horror de todos os tripulantes, soltou-se um dos enormes ganchos de ferro que seguravam a cabeça da baleia. Então, com uma vibração espantosa, a enorme massa inclinou-se mais ainda, fazendo estremecer o navio
como se êle tivesse chocado contra um recife. E o gancho
que restava, e que sustinha quase a totalidade do pêso,
parecia prestes a ceder também. 
  

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O "VIRGEM" E A NOVA CAÇA
trecho

Não tardou a aparecer o lombo enegrecido do cetáceo
a poucos metros do primeiro bote. Todos os movimentos demonstravam o seu esgotamento e, conforme os três botes se aproximavam, os arpoadores redobravam os cuidados.
Dos orifícios abertos com as lanças saíam potentes repuxos de sangue. Mas, pelo visto, nenhum ponto vital fôra atingido.
Quando a rodearam mais de perto, puderam todos apreciar
melhor a parte superior do corpo da baleia. 
Ficara sem olhos, e em lugar dêstes viam-se agora
dois buracos enormes, cheios de sangue e gordura. Aquilo
só, meus amigos, era capaz de inspirar pena, mas nenhum
dos homens que ocupavam os três botes se deixava dominar por êsse sentimento. Foi Flask quem decidiu pôr fim
a vida do cetáceo.
  

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O ATAÚDE COMO SALVA-VIDAS
trecho

Aquelas ilhotas rochosas, perto das quais passara o navio,
eram lugares de concentração de numerosos rebanhos
de focas. As crias, muitas das quais tinham, sem dúvida,
perdido as suas mães, deviam ter emergido à superfície
perto do barco e ao seguirem-no soltavam aquêle dilacerante lamento.
Mas a explicação impressionou ainda mais os marinheiros,
pois quase todos êles possuíam uma idéia 
bem supersticiosa a respeito das focas, motivada, em parte,
pelo tom quase humano dos seus gritos e pelo aspecto 
também um pouco humano de sua cabeça chata e redonda
e dos seus olhos de expressão inteligente e melancólica.
  

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É ELA
trecho

- O que estão vendo? - gritou Acab aos vigias.
- Não avistamos nada, capitão!
- Arriem as velas de joanete! Velas pequenas abaixo, rapazes!
Arriadas tôdas as velas, soltou o cabo reservado para subir
até o cêsto da gávea maior. Minutos depois içaram-no
até ela, mas antes que chegasse lá em cima lançou um grito como o de uma gaivota ferida:
- Por alí, vejam! meus filhos! Um lombo como o cimo 
de um monte de neve! É ela, Moby Dick, rapazes! Afinal
a avistamos!...
Naquele mesmo instante, os vigias repetiam o grito tão
desejado. O convés encheu-se de marujos e o navio
parecia uma coisa viva prestes a estourar de tanta emoção...
O capitão chegou, finalmente, ao ponto mais alto de um cêsto da gávea, mais acima que os vigias, de tal modo que Tashtego, empoleirado como um símio no tamborete
do mastaréu da gávea, tinha a cabeça à altura do calcanhar
de Acab. De semelhante altura, avistava-se o monstruoso
cetáceo com a sua enorme corcova branca,
quase resplandecente, lançando para o ar o seu grande repuxo.
 

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 FIM DO "PEQUOD" E DE TODOS
trecho

E, dizendo essas palavras, lançou um arpão. A baleia
ferida de morte, lançou-se para diante mais furiosamente
que nunca, até o ponto de enredar o cabo da arma aguçada.
O capitão agachou-se e conseguiu livrar-se de um golpe
violentíssimo de cauda, mas no movimento seguinte
a corda do cabo do arpão prendeu-se-lhe ao pescoço
e foi arrancado da embarcação... E ninguém, no bote,
reparou nêle. Estavam todos de ôlho no Pequod,
que se afundava. Era um espetáculo desolador. 
Da superfície da água emergiam agora os mastaréus,
onde continuavam a sua guarda os três arpoadores:
Queequeg, Dagoo e Tashtego. De repente, os grandes
círculos concêntricos das ondas alcançaram o bote solitário
com a sua pequena tripulação, e cada homem, cada remo 
e cada cabo de lança ou de arpão foi girando num fantástico
redemoinho, até que desapareceu perto dos últimos
destroços do Pequod.
 

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EPÍLOGO

"E só eu escapei para contar"
                                            Jó

Daquele punhado de bravos marinheiros que compunham 
a tripulação do Pequod só um conseguiu sobreviver
à tragédia marítima: eu. E nem mesmo consigo compreender
como pude salvar-me...
No desespêro daqueles momentos dramáticos, agarrei-me
àquele estranho salva-vidas de que já lhes falei: o caixão
de Queequeg. O torvelinho produzido pelo afundamento do navio deve ter-me jogado contra aquela singular bóia. 
E, agarrado ao ex-caixão do meu inesquecível amigo, flutuei
à deriva durante um dia inteiro, contemplando apavorado
o incessante desfile de tubarões, inofensivos já, devido,
sem dúvida, ao seu recente festim de carne humana.
Os esqualos deslizavam ao meu lado, indiferentes como
morsas, sem sequer me roçar.
Quanto tempo decorreu? Jamais soube. Só me recordo
que, quando já desesperava de poder salvar-me, avistei,
ao longe a inconfundível silueta de um navio. Era o Raquel,
que, aproximando-se do lugar onde eu me encontrava,
me recolheu a tempo de evitar que, desfalecido, 
me afundasse definitivamente.
Sim, era o Raquel, que continuava inútil e tenazmente
a sua dramática busca, vagueando sempre de um lado 
para o outro, como uma gaivota errante, atrás dos rastos de seus filhos desaparecidos.
E só pode encontrar um outro órfão...  
   

MOBY DICK