domingo, 4 de janeiro de 2009

"Beats" e Libertarios / Lawrence Ferlinghetti "O Mundo é um Ótimo Lugar..." / de: "Retratos do Mundo Passado" - 1955

Trimano - série Economia / "Liberdade Interditada"

O mundo é um ótimo lugar / pra se nascer /
se não te importa que a felicidade / nem sempre tenha /
muita graça / se não te importa um quê de inferno /
de quando em quando / justo quando tudo vai bem /
pois nem mesmo nos céus / se canta o / tempo todo /
O mundo é um ótimo lugar / pra se nascer /
se não te importa que alguns morram / o tempo todo /
ou sofram só de fome / parte do tempo / o que não é tão
mau assim / se não é com você / Ah o mundo é um ótimo lugar /
pra se nascer / se não te importam / algumas mentes mortas /
nos postos mais altos / ou uma bomba ou duas / de quando
em quando / nas suas caras pasmas / ou tais outras inconveniências /
que vitimam a nossa / sociedade Marca Registrada /
com a distinção de seus homens / e seus homens de extinção /
e seus padres / e outros patrulheiros / e suas várias segregações /
e investigações parlamentares / e outras prisôes /
de ventre que nosso torpe / corpo herda /
Sim o mundo é o melhor dos lugares / para tantas coisas como /
encenar diversão / e encenar amor / e encenar tristeza /
e cantar baixarias e se inspirar / e dar umas voltas / olhando de tudo /
e cheirando flores / e cutucando estátuas / e até pensando /
e beijando as pessoas e / fazendo filhos e usando calças /
e acenando chapéus e / dançando / e nadando nos rios durante /
piqueniques / no meio do verão / e no sentido amplo /
"vivendo até o fundo" / Sim / mas bem no meio disso chega /
então sorrindo o / agente funerário / de ""Retratos do Mundo
Passado" - tradução: Nelson Ascher
OS POETAS / Lawrence Ferlinghetti / USA 1919

Ferlinghetti

Antes de tudo, é bom lembrar. Em 1953, Lawrence Ferlinghetti criou, junto com Peter Martin, a City Lights Books, que editaria todos os primeiros livros dos poetas beats Allen Ginsberg, Gregory Corso, McLure e Lamantia. Martin era filho de um anarquista italiano, assassinado em 1943, e a City Lights funcionou como lugar de reunião das ideias de seu pai em São Francisco. Era lá que eles compravam seus jornais L'Adunata e L'Humanitá Nova. Martin largou o negócio em um ano e passou sua parte para Shigeyoshi Murao, mas a editora manteve a tradição libertária. Ferlinghetti e Shigeyoshi foram presos em 1957 por publicar literatura obcena, isto é: How! (Uivo), de Allen Ginsberg. O julgamento de How! foi um caso nacional e abriú o caminho para a primeira publicação na América de O Amante de Lady Chaterley de D.H. Lawrence, Trópico de Cáncer de Henry Miller e Almoço Nu, de William Burroughs (esse também depois de julgamento). Foi Ferlinghetti quem - a través da City Lighs, em 1971 e 1972 - trouxe os poetas russos Yevtuchenko e Voznesensky para ler seus poemas em São Francisco, assim como, em 1972, organizou leituras públicas feitas por poetas chilenos, gregos e americanos, em apoio á luta contra a ditadura na Grécia.

Ferlinghetti

Esse contexto é fundamental para se ler esse poeta que, numa atitude comum a todos os escritores beat, não separa a sua vida da sua poesia. Ler Ferlinghetti é ler a história de uma outra América, desconhecida da maior parte do público, que - na década de 50 e inicio dos anos 60 - só recebia de lá o brilho de Hollywood, coca-cola, motéis e drive-ins. Não se ouvia falar no "mundo á prova de beijo, um mundo de tampa de privada e taxis/ caubois de boutique / indios sem terra e madames loucas por cinema", dos quais fala O Olho do Poeta Vendo... Dos beats, aliás, nesse tempo, só chegaram aquí as tentativas recuperadoras da grande imprensa americana, que os caracterizava de cavanhaque, óculos escuros e roupas pretas, dizendo yeah, yeah, yeah (estereótipos que alguns "académicos" da grande imprensa paulista andaram ultimamente a repetir). Através da obra de Ferlinghetti, representada inteira nesse volume, vemos aparecer as questões que eram tematizadas no movimento de artistas e jovens beats dessa época: uma revolta contra os valores do capitalismo, do trabalho alienado e da corrida de ratos atrás do dinheiro, contra a destruição da natureza pela industria predadora, contra a proibição arbitrária do uso de drogas não ocidentais, contra os preconceitos ante a compreensão mágica da vida, contra o sexismo, contra a bomba atómica. Vemos sua colocação ao lado dos trabalhadores e dos imigrantes, pelo respeito a diversidade cultural, política e económica, vilipendiada pelo monopólio da cultura de consumo (protestante e anglo-saxónica). Através da sua obra, constatamos como esses temas se mantém, atravessando o apoliticismo dos hippies dos anos 70 (os últimos poemas são de 1981), quando a maior parte deles já se transformou em bandeira de movimentos organizados de ecologistas, feministas e minorias étnicas, pela liberação da maconha, antinucleares, etc... Essas questões pertencem a uma cultura internacional. Não tém pátria. São contra- efeitos do capitalismo industrial, ele mesmo planetário. E estão sendo vividos do mesmo modo nos nossos centros industriais. A voz de Ferlinghetti, a coerência e a força da sua posição existencial são um bom estímulo para a reflexão no momento. Mauro Sá Rego Costa / Crónica publicada no Jornal do Brasil, com motivo da edição da antologia "Vida Sem Fim", pela editora Brasiliense em 1984
PORTA SECRETA / Lawrence Ferlinghetti / (Hinoa a Macchu Picchu, após Neruda)

Trimano / Série "Diário" - Pedreira 2007-08

Porta secreta porta morta / que é Mãe / Porta secreta porta morta / que é Pai / Porta secreta porta morta / de nossa vida inumada / Porta secreta além da qual o homem deixa / suas pegadas pelas ruas / Porta secreta á qual batem mãos de barro / Porta secreta sem trincos / cuja vida é feita de batidas / de pés e mãos / Pobre mão pobre pé pobre vida! / Porta secreta com dobradizas de cabelo / Porta secreta com ferrolhos de lábios / Porta secreta com chaves de esqueletos / Porta secreta autobiografia da humanidade / Porta secreta dicionário do universo / Porta secreta palimpsesto de mim mesmo / Porta secreta eu sou feito dos / pedaços de meus membros / Porta secreta falácia patética / da evidência dos sentidos / em perceber a natureza da realidade

Trimano - "Indios" nanquim 1990

Porta secreta dos olhos cegos das térmitas / que batem batem / á porta / Porta secreta um homem cego com uma pequena caneca / numa esquina de pedra surdo e mudo / Porta secreta apito perdido de trem / no livro da noite / Porta secreta nas rodas da noite eu sigo errante / como um rinoceronte bebendo através de cidades / Porta secreta das asas de pombos-correio / parcialmente esquecidos / de seus destinos / Porta secreta asas de avião que desliza pelo espaço / lançando sombras de pedra / sobre o relógio de sol da terra / Porta secreta vagão voador da história / Porta secreta de Domingo sem igreja / Porta secreta das faces do animal que sorri e sonha / e porta secreta do homem de Cro-Magnon / entre máquinas / Porta secreta floresta escura da América / batendo batendo á porta de Dakota do Norte / Porta secreta que voa sobre a América / inclina-se sobre São Francisco / bate com estrondo a porta do Pacífico / e segue eternamente para o sul / para a Terra do Fogo / sob o mar batendo / á porta perdida das minas de carvão de Lota

Trimano / "Poesia Precolombiana" / guache - 1973

Porta secreta prancha de surf em direção á perdida praia da luz / e porta secreta flutuando com as marés / como tampa de um esquife naufragado / levando bocas cegas seios cegos através / através dos séculos / Porta secreta anjo do mar Albatroz em vôo / esquichando marés de esperma de amor em trinta linguas / e o navio-do-amor da vida / afundado pelo polvo-venenoso do ódio / Porta secreta serpente emplumada com membros de pássaro e asas duplas / varanda a lua em chamas eternamente bébada no tempo / batendo as asas solitária na eternidade / Porta secreta da futura vida mística / na nebulosa de Magalhães / e porta secreta de meu perdido / eu visionário / Porta secreta ponte de corda de São Luis da qual pende o homem / entre a natureza e o espírito / Porta secreta do espírito visto como algo carnal / e porta secreta de olhos e vulvas / que se abrem apenas com chaves / de cartilagem e carne / e porta secreta da gélida múmia do Inca / Príncipe de Chumbo / copulando com a morte em sacrifício ao deus sol

Trimano / série "Diário" - estudo / nanquim 2002

Porta secreta irmão mudo com uma pequena caneca / mendigando numa esquina de Cuzco / e soprando flautas de bambu / na meia-noite da coca / Porta secreta dos Andes a dez mil pés / envolto em dissonantes ruínas e horizontes avermelhados / de onde pendem litorais / ainda perdidos entre os cavalos / e cães dos conquistadores e suas incompreensíveis leis / Porta secreta río selvagem de Urubamba / em algum lugar do qual ainda flutua / a erva perdida que separa a alma do corpo / e porta secreta que é a própria erva/ e porta secreta que é esta separação / e porta secreta feita de espelhos / das águas deste rio / no qual não posso vê além de mim mesmo / porque meu corpo obstrui a visão / Porta secreta enfim posso vê além / de seu precioso corpo um saco de osos / que deixe nus sobre a rocha / Porta secreta sem asas eu me elevo / além deste rio / Porta secreta enfim caio através / do fim perdido do dia / É crepúsculo / quando se chega a / Macchu Picchu / Alguns indios passam dançando / tocam suas flautas / e batem tambores / de: "Partindo de São Francisco" - 1961 Perú-Chile, janeiro-fevereiro, 1960 / tradução: Marcos A. P. Ribeiro
ESTOU ESPERANDO / Lawrence Ferlinghetti