segunda-feira, 20 de março de 2017

CURSO DE ILUSTRAÇÃO EDITORIAL
O Conto Ilustrado
LUIS TRIMANO
Ilustrações para "Estação Doicodi" de Álvaro Caldas
"El Barco" - Edição virtual - Rio de Janeiro 2017

Álvaro Caldas


ÁLVARO CALDAS
Nasceu em Goiânia em 1940.
Trabalhou nas principais redações de Rio de Janeiro
e São Paulo. 
Colaborou com jornais da imprensa alternativa 
nas décadas de 1970 e 1980.
Na ditadura foi preso varias vezes, esse processo
foi contado no livro "Tirando o Capuz"
É também autor do romance "Balet da Utopia".
Os dois relatos que posto no blogger fazem parte
do livro de contos "Estação Doicodi", no prelo.
Um Dia Muito Especial
 ÁLVARO CALDAS
 

TRIMANO -"Estação Doicodi" - Um Dia Muito Especial - releitura de escultura de Rogelio Yrurtia


O sol já está alto, passa do meio dia, quando finalmente
descemos a escadaria que liga o prédio principal ao pátio
de manobras do 1º Batalhão da Polícia do Exército.
Seu território  faz fronteira com a área posta sob domínio
da Estação Doicodi. Logo posso identificar suas principais
referências arquitetónicas: os dois prédios baixos, horizontais, pintados com tonalidades verdes, 
situados ao fundo. O pátio é amplo, ao ar livre. 
Fica no centro de um conjunto de antigas edificações
de dois andares, onde se localizam dependências administrativas.
As salas do andar superior posuem sacadas com grades
de ferro, formando um conjunto que me faz lembrar
a área interna de um convento.
Um dia de rotina nas atividades do Batalhão. À nossa frente, um pelotão de soldados marcha em ordem unida. A uma voz
de comando, torcem o pescoço e olham à esquerda. Depois
o mesmo movimento para a direita. Em seguida a voz determina alto! Os praças interrompem a marcha e batem
com força os calcanhares de seus coturnos. Mais adiante,
próximo da entrada de uma garagem de motos, um grupo
especializado de militares faz um treinamento com cães,
que são estimulados a saltar obstáculos.
A Polícia do Exército usa cães e motos em suas ações
externas.
Um dia de calmaria na rotina do Batalhão Marechal
Zenóbio da Costa, comandante da Força Expedicionária Brasileira na 2º Guerra. Um dia de assombro na vida
deste narrador. Olho em torno e posso dizer: sim, já estive
aqui nesta praça de armas. As pessoas é que são outras.
A história avançou quase meio século. Tinha 29 anos
quando caminhei por esse piso de cimento corrido a primeira
vez. Era repórter do "Jornal do Brasil" e integrante 
de uma organização de luta armada. Misturava as duas
atividades com paixão. Combinava perigosamente a vida legal com a militância clandestina. A ditadura devastou
a terra onde germinavam aqueles sonhos.
Fruto de uma conjunção espacial misteriosa, foi aqui,
neste círculo central onde se encontram meus pés,
que vi o "Gigante da Colina" pela última vez. O "Gigante"
foi o primeiro carro comprado com meu salário de repórter.
Um fusquinha vinho, que trazia no vidro traseiro o adesivo
do Clube de Regatas Vasco da Gama. Durante meses
foi um leal servidor da organização. Transportou militantes
clandestinos, levou panfletos para porta de fábricas,
participou de pichações e pequenas ações de roubo 
de placas. Serviu de abrigo para apressadas reuniões
e terminou seus dias de combatente num tiroteio, na praça
Aquidauana, depois de uma perseguição pelas ruas 
de Bras de Pina. Batido, recebeu meia dúzia de balaços.
Naquele dia, o tenente Dulene Aleixo Garcez dos Reis
surgiu diante do portão de grades do "Maracanã",
a grande cela coletiva que reunia os estropiados 
vindos da tortura, e chamou pelo meu nome. 
Hora de almoço, estava aguardando a chegada do bandejão,
final de abril de 1970, dois meses após minha prisão. Garcez
era um dos tenentinhos mais temidos entre os que davam
expediente integral no Doicodi. Um temor derivado de sua
insignificância e dos golpes que desferia. Pediu-me para
acompanhá-lo. Considerei aquilo descabido. Estava na hora
do rango e meu período de porradas já havia terminado.
Para, mostrar que nada do que acontecia ali era descabido,
fez logo uma provocação: quer dizer então que o jornalista,
além de subversivo é trambiqueiro?
Ele me conduz ao pátio, onde uma pequena cerimonha
estava montada. No meio de um grupo estranho de homens
de terno e gravata, que cumpriam um mandado de busca
e apeensão, com cláusula de arrombamento e requisição
de força, estava o "Gigante", inteiramente desfigurado.
Deu perda total. Os oficiais de justiça saíram a sua procura
e foram encontrá-lo batido, no 1º Batalhão da Polícia do Exército. Veio fazer companhia ao seu antigo proprietário,
o jornalista subversivo e trambiqueiro, que deixara de pagar
as três últimas prestações de sua compra financiada.
Permaneci imóvel enquanto revia a cena se desenrolar
diante de meus olhos. Guardo até hoje cópia da folha 
de papel oficial, carimbada e amarelecida, com a assinatura
do tenente Dulene Aleixo Garcez dos Reis, O "Gigante",
que portava uma placa fria e tinha os pneus murchos,
nunca mais vi. Foi entregue aos oficiais da Justiça
que o encontraram nas dependências do Doicodi.
E eu, levado de volta ao "Maracanã".  

TRIMANO - "Estação Doicodi" - Um Dia Muito Especial - releitura de escultura de Rogelio Yrurtia


TRIMANO - "Estação Doicodi" -Um Día Muito Especial - releitura de escultura de Rogelio Yrurtia


Deixo para trás a cena kafkiana e reinicio a caminhada,
a passos lentos. Visualizo na paisagem velhas palmeiras
com sua folhagem ressequida, que não estavam
na minha memória. As lembranças que permanecem formam
um fragmentado mosaico em preto e branco, 
a cor da década. São imagens que trazem desassossego,
uma súbita falta de energia. 
Faço uma nova parada para tomar fôlego e me distraio
por alguns segundos. A claridade azul no céu é radiante.
Sopra um vento que ameniza a luz do sol. Alguém me da
um tapinha nas costas e me desperta, como se quisesse
me encorajar. Viro e dou de cara com o sorriso de Nadine,
uma das mulheres da Comissão da Verdade. Quer que eu marche à frente da tropa.
Mas o que me veio a cabeça neste instante e me distraiu 
por alguns segundos é a lembrança de um filme de Ettore
Scola. Um belo filme que jamais vou esquecer. Me detenho
numa cena em que Marcelo Mastroiani e Sophia Loren
estão conversando na janela de seu apartamento, enquanto
Benito Mussolini e Hitler desfilam de carro pelas ruas 
de Roma. Não estou em Roma, estou no Rio de Janeiro,
na Tijuca, no dia 23 de setembro de 2013, numa visita
de reconhecimento às instalações do Doicodi, mas tenho
a clara percepção de estar vivendo "Um Dia Muito Especial".
Na noite anterior não tinha conseguido pegar no sono,
pensando nos tropeços desta caminhada, no momento
em que ia penetrar na escuridão do túnel. 
De súbito me dou conta de que devo tomar a frente
deste inusitado ato, ainda que o tempo vire 
e caia uma tempestade. Não importa o que os militares 
que nos acompanham pensem. Os tempos são outros,
a situação exige que eu tenha serenidade, não pode ser
de outra maneira. Empreender um esforço para conter
o fluxo da memória e me equilibrar na corda bamba,
como se fosse um malabarista. As duas formações, de civis
e militares, avançam em marcha lenta. Aqui, agora, somos
todos iguais, paisanos e milicos. Seguimos em direção
ao fundo do pátio.
Na condição de testemunha, assumo o papel de guia
e tomo a frente do comboio. Mesmo que me falte coragem,
estou obrigado a cumprir o ritual, acossado pelo calor
desta segunda-feira, 23 de setembro de 2013. 
Avisto o sobrado de dois andares do Pelotão 
de Investigações Criminais e digo com convicção que é lá
a Estação Doicodi. Desembarquei ali duas vezes, algemado.
Diante do que se passou, os 43 anos decorridos tornam-se
uma pequena fração do tempo. Por fora, não mudou muito.
Pintado de verde e branco, janelas com grades e a inscrição
Pelotão de Investigações Criminais.
Um oficial toma a frente e diz que o prédio do DOI é o outro,
à nossa esquerda. Digo a ele que não, é este, eu já o havia reconhecido. Ele não insiste, aceita. A memória é uma propriedade particular da qual não posso abrir mão. Vejo
na porta dois soldados cabisbaixos, aguardando 
nossa chegada. Olho para o chão e percebo a minha própria sombra, como se estivesse me vigiando. As sombras brincam com a gente, mas às vezes assustam. 
Com mais calma, esclareço que na verdade são os dois.
Um para os interrogatórios e o outro, construído durante
a reforma, para abrigar o comando e a parte administrativa
do Doicodi, que precisou se expandir. São vizinhos.
A velocidade com que as sensações estão girando
podem tornar as coisas difíceis. O guia não precisa consultar
um mapa fisico para se orientar. Escuda-se no mapa cognitivo que traz armazenado no cérebro, 
com sua percepção inata de sentir o lugar onde se encontra.
E orientá-lo em sua navegação. A memória do túnel
com seus corredores tece uma trama que cria um vínculo
real com o mundo visível do presente. 

TRIMANO - "Estação Doicodi" - Um Dia Muito Especial


TRIMANO - "Estação Doicodi" - Um Dia Muito Especial


O Deplorável Torturador Flecha Ligeira
ÁLVARO CALDAS
 

TRIMANO "Estação Doicodi" - O Deplorável Torturador Flecha Ligeira


O que o leitor lerá a seguir é o esboço de um relato
deixado na portaria de meu prédio por um homem
que se apresentou como advogado. Estava apressado,
vestia terno e gravata, perguntou ao porteiro se eu ainda
morava no prédio. Depois de uma primeira leitura,
cogitei que poderia enviá-lo para apreciação do imortal
Jorge Luis Borges, autor de uma afamada
"História Universal da Infâmia".
Seu personagem, Flecha Ligeira, a Serpente Pérfida
de Olhar Cintilante, situa-se na tradição dos tipos infames
recriados por Borges a partir de suas leituras de autores
clássicos. Borges utilizou a magia, o sonho e a imaginação
nos seus exercicios de prosa narrativa para compor
sua galeria universal de fascínoras. "O Estranho Redentor 
Lazarus Morell", "O Incrível Impostor Tom Castro", 
e o "Provedor de Iniquidades Monk Eastman", entre os sete
relatos de ficção que integram seu primeiro livro de contos,
que foi publicado em 1935. Nele, propõe outro modo
de representar a realidade, que a questiona e ultrapassa.
Escolheu para a obra um título retumbante, e fez uso
de uma linguagem barroca.
O deplorável Flecha Ligeira é um tipo que se situa 
na linhagem do "Provedor de Iniquidades Monk Eastman".
O envelope lacrado que me foi entregue pelo porteiro
continha apenas uma página datilografada, espaço um
entre as linhas, com poucos parágrafos. Seu autor andou pelos cárceres da ditadura durante mais de dois anos,
de 1970 a 1972. Se for o mesmo que eu estou pensando,
devo ter cruzado com ele em um quartel do Exército,
lá pelas bandas da Vila Militar, que serviu de carceragem
para presos políticos.
Em seu relato, encontrei imprecisões e lacunas. Não posso
atestar que tudo o que ele narra seja verdade. Poderia ser
que, com sua arte, Borges a transformasse num texto
magnífico. Foi com material semelhante, fantástico
e aparentemente inverossímel, que ele criou suas lendas.
Também pesou em minha decisão de transcrevê-lo o fato,
inquestionável, de que seu autor foi hóspede desta Grande
Estação Central, o Doicodi da Barão de Mesquita.

O Olhar Fixo e cintilante de uma serpente pérfida.

No final de 1970 cheguei preso pela primeira vez 
ao tenebroso Doicodi da Barão de Mesquita. Meu irmão
mais velho, José Dourado, codinomes Andrade e Baianinho,
estava em um quartel do Exército na Vila Militar, juntamente
com outros presos políticos entre os quais Maria Auxiliadora
Barcellos Lara, que foi libertada no sequestro do embaixador
suiço e se suicidou no exílio, em Berlim. 
Me encontrava ainda na semilegalidade e forçava a barra
visitando meu irmão para fazer a ligação entre a prisão
e a organização, quando surgiu o plano para asaltar 
o quartel, libertar os presos e levar uma boa quantidade
de armas e munição. A ação contava com a colaboração
interna de dois soldados e um sargento. Malogrado o plano,
fui preso.
Certo dia, no mês de dezembro de 1970, um camburão 
da polícia estacionou no pátio do Batalhão. Eu e um dos soldados envolvidos no plano, ainda usando a farda
do Exército, fomos conduzidos até o compartimento traseiro
da viatura, onde se encontrava preso o advogado gaúcho
Carlos Franklin de Araújo, o Max. Me identifiquei e relatei o ocorrido. Ele me disse que também era membro 
da organização, e que a Estela, Dilma Rousseff,
já se encontrava no Doicodi. Fomos levados no camburão
para um quartel da Aeronáutica, e pouco tempo depois
trazidos de volta para o Doicodi.
Fiquei na cela seis, ao lado da que se encontrava a Estela.
Um "catarina", (soldado do Exército), que fez amizade comigo porque queria ser paraquedista e foi obrigado
a servir na PE, me disse que na cela vizinha estava
uma prisioneira trazida de São Paulo, com seu companheiro.
Todo plantão ele me trazia uma ou duas frutas, 
alguns biscoitos e cigarros. Chegou a dar um telefonema fora do quartel para o escritório do advogado Sobral Pinto,
na rua Debret, centro do Rio. Libertado condicionalmente
pela Segunda Auditoria da Aeronáutica, voltei à luta clandestina. A organização era então comandada pelo
James Allen Luz, o Ciro, único remanescente do Comando
Nacional que não tinha sido preso ou morto. 
Integrava a chamada Frente Armada de Resistência 
à Ditadura.