quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

CASA TOMADA de Julio Cortázar - Análise Crítica

Em Casa Tomada de Julio Cortázar,
além da história de fantasmas sugerida, encontra-se o contexto político da época, representando
uma Argentina "invadida" pela ditadura peronista,
que obrigou o autor a abandonar o seu mundo e sua casa,
e refugiar-se no exilio. Também pode ser interpretado
como uma alegoria do angustioso sentimento de "invasão"
que a migração interna provocava na classe média após
a queda do poder político da burguesia proprietária
de terras na etapa peronista que provocou a perda da sua tutoria exercida sobre a classe média.
A irrupção dos pobres como novos sujeitos políticos, a sua presença nos espaços públicos, até então privativos 
da classe média e alta, como resultado da onda migratória
que já se insinuava nos anos 30, acompanhando a industrialização resultante da necessidade de substituição
de importações devido a Guerra Mundial, deixou entre aqueles que sentiram seus ambientes "invadidos" por 
aquele elemento estranho, uma série de imagens
paradigmáticas. Uma delas e a dos trabalhadores 
dos subúrbios ocupando o centro de Buenos Aires
no 17 de outubro de 1945 pedindo a libertação do então
coronel Juan Domingo Perón, Secretário de Trabalho
até pouco tempo antes, que tinha sido preso no contexto
de um confronto no seio do governo militar do qual fazia parte. Esses trabalhadores, depois de caminhar desde a periferia até a região central da capital, arregaçaram
as calças e mergulharam os pés nos chafarizes da Plaza
de Mayo, onde se encontra a Casa Rosada, 
sede do governo. O episódio seria lembrado como o das
"patas en las fuentes", inscrito na memória das camadas
média e alta como um gesto bárbaro contra a cultura urbana,
confirmando a ideologia da "civilização X barbárie", instalado
como matriz para pensar o popular desde o século XIX,
com a publicação de "Facundo" de Domingo Faustino Sarmiento, en 1845.

texto extraído da Wikipédia
CASA TOMADA
Julio Cortázar

CASA TOMADA


CASA TOMADA

Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa
e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem
as mais vantajosas liquidações dos seus materiais),
guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô
paterno, de nossos pais e de toda nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela,
o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam
viver oito pessoas sem se estorvarem.
Faziamos a limpeza pela manhã, levantando-nos
às sete horas, e, por volta das once horas, eu deixava
para Irene os últimos quartos para repassar 
e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre
pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser
alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando 
na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos
mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora
ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois
pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther
pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos
quarenta anos com a inexpressada idéia de que nosso
simples e silencioso casamento de irmãos era uma
necessária clausura da genealogia assentada por nossos
bisavós na nossa casa. Alí morreríamos algum dia,
pregiçosos e toscos primos ficariam com a casa 
e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno
e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos
com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA


CASA TOMADA

Irene era uma jovem nascida para não incomodar
ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava
o dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei
porque tricotava tanto, eu penso que as mulheres
tricotam quando consideram que essa tarefa
é um pretexto para não fazerem nada.
Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias,
casacos para o inverno, meias para mim, 
xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete
e depois o desfazia num instante porque alguma coisa 
lhe desagradava. Era engraçado ver na cestinha
aquele monte de lã encrespada resistindo a perder
sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia
prazer com as cores e jamais tive que devolver
as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades
de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada
valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar,
da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô.
A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está
terminado não se pode repetir sem escândalo. Cerco dia
encontrei numa gaveta da cômoda, xales brancos, verdes,
lilases, cobertos de naftalina empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava
fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, 
todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre
aumentando. Mas era só o tricô que distraia Irene,
ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo
e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam
constantemente os novelos. Era muito bonito.

CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA


CASA TOMADA

Como não me lembrar da distribuição da casa!
A sala de jantar, linda sala com gobelins, a biblioteca
e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada,
a que dá para a rua Rodriguez Peña. Somente um corredor
com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos
e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos
de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão.
De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam
a cancela e pasavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava
para a parte mais afastada; avançando pelo corredor
atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além
começava o outro lado da casa, também se podia girar
à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor
mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro.
Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam
que a casa era muito grande; porque, do contrário,
dava a impressão de ser um apartamento dos que agora
estão construindo, mal da para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer
a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis.
Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças
aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas
de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador,
ele voa e fica suspenso no ar, um momento depois
se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito
simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando
no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente
tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão.
Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno
entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha
quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca.
O som chegava preciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também
o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo
do corredor que levava daqueles quartos até a porta.
Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais,
fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente
a chave estava colocada do nosso lado e também passei 
o grande fecho para mais segurança.

CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA


CASA TOMADA

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei
com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
- Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte
dos fundos. Ela deixou cair o tricô e olhou para mim
com seus graves e cansados olhos.
- Tem certeza?
Assenti
- Então - falou pegando as agulhas - teremos que viver
deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela
demorou um instante para retornar a sua tarefa. Lembro-me
de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava
desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias), fechávamos 
alguma gaveta das cômodas e nos mirávamos com tristeza.
-Não está aqui
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro
lado da casa. Porém também tivemos algumas vantagens.
A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos
bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das once horas já estávamos de brazos cruzados. Irene foi
se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar
a preparar o almoço.
Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos 
para comermos fríos à noite. Ficamos felizes, pois era
sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha
para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene
e as travessas de comida fria. Irene estava contente porque
sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco
perdido por causa dos livros, mas, para não afligir 
minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso
me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene
que era mais confortável.
As vezes Irene falava:
- Olha esse ponto que acabei de inventar, parece o desenho
de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse
o mêrito de algum selo de Eupense & Malmédy.
Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar.
Pode-se viver sem pensar.
 

CASA TOMADA - detalhe


CASA TOMADA

Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono.
Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua
ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta.
Irene falava que meus sonhos consistíam em grandes
sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão.
Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite
ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouviamos nossa respiração, a tosse, presentíamos os gestos que
aproximavam a mão do interruptor da lâmpada,
as mutuas e freqüentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia
eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas
do tricô, um rangido ao passar as folhas do album filatélico.
A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha
e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada,
falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho de louça e vidros
para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes
permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos 
para os quartos e para o salão, a casa ficava calada
e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, a noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono. 
É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências.
Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse
a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água.
Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha
ou tal vez no banheiro, porque a curva do corredor,
abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me e veio ao meu lado sem falar nada.
Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram
deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos, apertei o braço de Irene e a fiz correr
comigo até a porta cancela, sem olhar para atrás. Os ruídos
se ouviam cada vez mais fortes, porem surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor.
Agora não se ouvia nada.
- Tomaram esta parte - falou Irene.
O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até 
a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu 
que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô
sem olhar para ele.
- Você teve tempo para pegar alguma coisa? - perguntei-le
inutilmente.
- Não, nada...
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quize
mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho
que ela estava chorando), e saímos assim à rúa. 
Antes de partir sentí pena, fechei bem a porta de entrada
e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum
pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, 
a essa hora e com a casa tomada.

(Este conto foi publicado originalmente no livro "Bestiário" (1951)

CASA TOMADA - detalhe