terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NO MEIO DE TUDO ISSO
A China a vender fuzis para os soldados de Pinochet. / O Afeganistão invadido pelas tropas soviéticas que matam e morrem, / entre as montanhas em que o Pentágono desenha Tróias e desastres. / O Oriente Medio servindo de pasto as maquinações da CIA. / O Camboja inteiramente ensangüentado pelo "marxismo" de Pol Pot. / Salvadorenhos são mortos pelas armas made in USA. / Argentinos, brasileiros, bolivianos e chilenos aprendem nos EUA / como torturar argentinos, brasileiros, bolivianos e chilenos.

TRIMANO - Poster poema / nanquim e cor aplicada - Editora Europa / Rio de Janeiro 1986

A ONU a reunir-se com senhores de gravata / fotografados e sempre sorrindo, sorrindo. / Há mais de vinte milhões de menores abandonados neste país / em que velhos definham lambendo o tronco das árvores, / tão áspero como a pensão dos que não têm mais nada para alugar. / A URSS financiou os que metralharam comunistas na Eritréia? / A mesma URSS que apóia uma claridão cubana e ainda adolescente / no Caribe cercado por uma escuridão de lingua inglesa? / Não sei, mas sei que a certeza se espadana no próprio anzol / das incertezas colhidas pelo coração que sofre, pensa e faz. / Sei que a imprensa mente, a televisão mutila e a liberdade morre / sob a ordem em que se tece o mando de poucos e a submissão de muitos. / E que Ronald Reagan é uma figura de gomalina e creme contra as rugas / entronizada por quatrocentos empresários que mastigam o século / em chicletes que se esticam como a corrupção nos que governam.
E eu no meio de tudo isso? E eu / na poeira de tantas perguntas sem resposta / na veia aberta para o vazio e para a história / ou sobre a colcha amarrotada pelos rodopiáres da volúpia / o tapete manchado pelo pipi da cachorrinha / a lista de impostos a pagar / e as latas da memória, usadas, tão a esmo usadas / pelos pincéis de uma bêbada lembrança?

Fotomontagem - Revista OPUS Internacional 1970/80

O que eu não posso, em meu poema, é continuar / almoçando letras de jornais e teses de doutorado / enquanto a noite nos espera com desertos / no final de cada luz em que se apaga o dia / com a fome de todas as verdades que não estavam / nas letras dos jornais e nas teses de doutorado. / O que eu não posso é continuar / perguntando "E eu com tudo isso?" / enquanto cada ato que faço me insere / na própria face de tudo isso que indago.

Fotomontagem - Revista OPUS Internacional 1970/80

O que eu não posso, aquí, é nestas ruas aceitar-me / digitado sem o perfil das minhas sombras / na sombra dos que não me vêem e se fizeram / cães de guarda do poder em que se alienam Estado e ideologias. / O que não posso é sentir-me em tudo isso e não ser / a ferida aberta na grande curva do horizonte / pelo uso dos medos que se fardam / com a escuridão acumulada nas injustiças da riqueza. / O que eu não posso é pensar tudo isso sem pensar-me / sob os vendavais de uma carta que se queima / no olho sempre aberto dos Guevaras deste século. // O que eu não posso é padecer isso tudo e não fazer-me / lenha a queimar-se no calor das praças. / Numa alegria passiva, alí, o povo é reunido / com anima enganada e ainda incônscio / de ser ele, com suas mãos e o seu suor, a força / que move nos porões da história principal / as alavancas do dia e o chão das coisas inventadas. / Mentirosos, os holofotes iluminam os atores e as atrices / das glórias de ter fingido o ser / a voz dos que são pobres, a voz dos que não têm / condições iguais de microfone e luz.
O que eu não posso é perguntar como indivíduo e não / ver a beleza da vida a singularizar-se erótica / na mulher que nada na sua quase nudez numa piscina / como se fosse, ela própria, um recado azul / para os desejos da noite em minha retina. / Perguntar por tudo isso, como poeta, e não ler / além dos diccionários o tempo que circula / o dia de amanhã sob outros mundos esboçado / para o menino que bebe o leite e perde o pão / numa cozinha do tamanho do mundo em que penso.

fotomontagem - Revista OPUS Internacional 1970/80

Não posso é perguntar assim e não marcar no mapa / o caminho, o longo caminho, o difícil caminho / das mentes que se carregam como um fósforo aceso / nos escuros. O que devo, eu sei, é sempre relembrar-me / que a utopia é necessária, que o nosso ar é o das imagens / em que a necessidade morre e o ser humano dança / entre as nuvens e com a Terra inteira nas mãos. // Porque a vida humana é um perguntar que anda / e viver, por isso mesmo, é ser a boca da luz / em que se gera o sol. Porque essencialmente somos / a fome do fogo em que ele existe / a ondular o mar, a fabricar as chuvas e a iluminar / os olhos do amanhecer que sempre volta / depois que a noite leva os mortos. // Não posso é ver tudo isso sem ver-me também / quebrado entre todas as vidas que se quebram / no dia do homem a compor-se em mil pedaços / que as atuais definições da história não definem. / O que eu não posso é deixar de recolher / em cada detalhe o vulto veloz de uma totalidade / que se apaga e que se acende, súbito clarão / de um farol a iluminar-nos em cada ato que fazemos. / E continuar, portanto, perguntando, perguntando / até que a morte não traga mais pergunta alguma / em sua eternidade oca e sem resposta alguma. MOACYR FÉLIX - de Antologia Poética / Editôra José Olimpio - Rio de Janeiro 1981