O propósito deste blog é o de mostrar o trabalho do ilustrador,independente das regras impostas pelo mercado,nas quatro disciplinas praticadas por mim, em diferentes momentos e veículos: A Caricatura na Imprensa,A Ilustração na Imprensa,A Ilustração Editorial e O Poema Ilustrado. Também são mostradas modalidades diferentes das mesmas propostas como: Montagens das exposições e a revalorização do painel mural, através das técnicas de reprodução digital em baner.
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
A China a vender fuzis para os soldados de Pinochet. /
O Afeganistão invadido pelas tropas soviéticas que matam e morrem, /
entre as montanhas em que o Pentágono desenha Tróias e desastres. /
O Oriente Medio servindo de pasto as maquinações da CIA. /
O Camboja inteiramente ensangüentado pelo "marxismo" de Pol Pot. /
Salvadorenhos são mortos pelas armas made in USA. /
Argentinos, brasileiros, bolivianos e chilenos aprendem nos EUA /
como torturar argentinos, brasileiros, bolivianos e chilenos.
A ONU a reunir-se com senhores de gravata /
fotografados e sempre sorrindo, sorrindo. /
Há mais de vinte milhões de menores abandonados neste país /
em que velhos definham lambendo o tronco das árvores, /
tão áspero como a pensão dos que não têm mais nada para alugar. /
A URSS financiou os que metralharam comunistas na Eritréia? /
A mesma URSS que apóia uma claridão cubana e ainda adolescente /
no Caribe cercado por uma escuridão de lingua inglesa? /
Não sei, mas sei que a certeza se espadana no próprio anzol /
das incertezas colhidas pelo coração que sofre, pensa e faz. /
Sei que a imprensa mente, a televisão mutila e a liberdade morre /
sob a ordem em que se tece o mando de poucos e a submissão de muitos. /
E que Ronald Reagan é uma figura de gomalina e creme contra as rugas /
entronizada por quatrocentos empresários que mastigam o século /
em chicletes que se esticam como a corrupção nos que governam.
E eu no meio de tudo isso? E eu /
na poeira de tantas perguntas sem resposta /
na veia aberta para o vazio e para a história /
ou sobre a colcha amarrotada pelos rodopiáres da volúpia /
o tapete manchado pelo pipi da cachorrinha /
a lista de impostos a pagar /
e as latas da memória, usadas, tão a esmo usadas /
pelos pincéis de uma bêbada lembrança?
O que eu não posso, em meu poema, é continuar /
almoçando letras de jornais e teses de doutorado /
enquanto a noite nos espera com desertos /
no final de cada luz em que se apaga o dia /
com a fome de todas as verdades que não estavam /
nas letras dos jornais e nas teses de doutorado. /
O que eu não posso é continuar /
perguntando "E eu com tudo isso?" /
enquanto cada ato que faço me insere /
na própria face de tudo isso que indago.
O que eu não posso, aquí, é nestas ruas aceitar-me /
digitado sem o perfil das minhas sombras /
na sombra dos que não me vêem e se fizeram /
cães de guarda do poder em que se alienam Estado e ideologias. /
O que não posso é sentir-me em tudo isso e não ser /
a ferida aberta na grande curva do horizonte /
pelo uso dos medos que se fardam /
com a escuridão acumulada nas injustiças da riqueza. /
O que eu não posso é pensar tudo isso sem pensar-me /
sob os vendavais de uma carta que se queima /
no olho sempre aberto dos Guevaras deste século. //
O que eu não posso é padecer isso tudo e não fazer-me /
lenha a queimar-se no calor das praças. /
Numa alegria passiva, alí, o povo é reunido /
com anima enganada e ainda incônscio /
de ser ele, com suas mãos e o seu suor, a força /
que move nos porões da história principal /
as alavancas do dia e o chão das coisas inventadas. /
Mentirosos, os holofotes iluminam os atores e as atrices /
das glórias de ter fingido o ser /
a voz dos que são pobres, a voz dos que não têm /
condições iguais de microfone e luz.
O que eu não posso é perguntar como indivíduo e não /
ver a beleza da vida a singularizar-se erótica /
na mulher que nada na sua quase nudez numa piscina /
como se fosse, ela própria, um recado azul /
para os desejos da noite em minha retina. /
Perguntar por tudo isso, como poeta, e não ler /
além dos diccionários o tempo que circula /
o dia de amanhã sob outros mundos esboçado /
para o menino que bebe o leite e perde o pão /
numa cozinha do tamanho do mundo em que penso.
Não posso é perguntar assim e não marcar no mapa /
o caminho, o longo caminho, o difícil caminho /
das mentes que se carregam como um fósforo aceso /
nos escuros. O que devo, eu sei, é sempre relembrar-me /
que a utopia é necessária, que o nosso ar é o das imagens /
em que a necessidade morre e o ser humano dança /
entre as nuvens e com a Terra inteira nas mãos. //
Porque a vida humana é um perguntar que anda /
e viver, por isso mesmo, é ser a boca da luz /
em que se gera o sol. Porque essencialmente somos /
a fome do fogo em que ele existe /
a ondular o mar, a fabricar as chuvas e a iluminar /
os olhos do amanhecer que sempre volta /
depois que a noite leva os mortos. //
Não posso é ver tudo isso sem ver-me também /
quebrado entre todas as vidas que se quebram /
no dia do homem a compor-se em mil pedaços /
que as atuais definições da história não definem. /
O que eu não posso é deixar de recolher /
em cada detalhe o vulto veloz de uma totalidade /
que se apaga e que se acende, súbito clarão /
de um farol a iluminar-nos em cada ato que fazemos. /
E continuar, portanto, perguntando, perguntando /
até que a morte não traga mais pergunta alguma /
em sua eternidade oca e sem resposta alguma.
MOACYR FÉLIX - de Antologia Poética /
Editôra José Olimpio - Rio de Janeiro 1981
Assinar:
Postagens (Atom)