segunda-feira, 20 de março de 2017

Preso novamente em janeiro de 1972, em pleno horror
da ditadura Médici, cheguei pela terceira vez ao Doicodi,
quando já estavam instaladas as câmeras de tortura
conhecidas como geladeiras, equipadas com ruídos eletrónicos e temperatura controlada pelos algozes.
Alternavam do mínimo ao máximo, objetivando desestabilizar a estrutura psicofísica dos presos. Depois
do pau (tortura) fuí transferido para uma das solitárias
do PIC, o Pelotão de Investigações Criminais. Um dia
a portinhola abriu-se. Um desajustado torturador, capitão
do Exército de codinome Flecha Ligeira, foi na cela me zoar.
Alemão zombador, com aquele jeitão psicopatanhado,
exclamou sarcasticamente: "Hã, hã, Dourado véio. O bom 
filho a casa torna". Meteu a cabeça finjindo examinar tudo.
O teto e uma parte da parede, onde havia uma inscrição,
feita por algum prisioneiro ou prisioneira, que antes por lá
passara: "Que seria da vida se nela não houvesse 
uma lágrima. Um dia juntos estaremos, usufruindo
das tristezas e das alegrias."
Observou atentamente o vaso sanitário execrável, 
com um olhar fixo e cintilante de uma serpente pérfida.
"É guerra, é guerra!", berrou. Exibiu o peitão queimado
de sol e fez um gesto manjado, unindo os polegares
e indicadores das duas mãos, dizendo que "estava assim 
de boceta gostosa na praia, e tu vai ficar aqui nesta porra
até brochar. O canalha provocador do cabo Gil bateu
a portinhola com força, berrando "terrorista filho da puta!"
Flecha Ligeira adorava torturar os presos colocando
para tocar bem alto a música de Roberto Carlos, "Jesús
Cristo, eu estou aquí". Lá na boate, como eles chamavam a sala de tortura, o tempo todo do interrogatório 
o cano da arma no meu ouvido, praticando roleta russa.
Toda vez que comprimia o dedo e o projétil não detonava,
o Flecha Ligeira exclamava sadicamente: "Ôôô Dourado velho de sorte". E tornava a colocar a arma na cintura.
O facínora do dr. Nagib, a seu lado, puxou os fios 
que ligavam os choques elétricos e pôs um calhamaço
em cima da mesa. Com uma risadinha cínica e irônica,
disse: "Agora, vamos contemplar os nossos artistas favoritos". Folheou os dossiês das organizações 
com as fotografias dos militantes. Quando chegou ao dossiê
do Oito (MR8), na foto do Adriano, ficou visivelmente
transtornado. Massageava a foto lentamente, com um olhar
enviezado e tom de voz esquisito. "Hã, hã, meu garoto, quando você vai chegar aquí?".
Depois de uma pausa, a serpente pérfida de olhar cintilante
reapareceu com uma faca curta e afiada na mão,
e ficou com ela fazendo ronda da minha cara. Encostava
a ponta da lámina de um lado e de outro, dizendo que ia
me deixar com uma cicatriz para o resto dos meus dias.
O Bartô, Alex Polari de Alverga, quando esteve preso 
comigo, me disse que se tratava de um capitão gaúcho
de nome Smiht ou Hudson. Também contou que uma vez
a Vepê (VPR), fes uma ação de desapropriação de alimentos
para distribuir para a ralezada da favela do Jacarezinho.
E que o tempo todo um helicóptero da repressão sobrevoou
a área. Quando ele caiu (foi preso), lá na Barão de Mesquita, o Flecha Ligeira lhe disse "Tava com o dedo coçando para destravar o pino e lançar sobre vocês a "bichinha" (granada).
Mas o major que comandava a operação não permitiu
o  desatino.

Adalto Dourado de Carvalho, advogado, Subcomandante
da Vanguarda Palmares.
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Durante anos permaneceu misteriosa a verdadeira identidade do falecido Flecha Ligeira, a Serpente Pérfida
de Olhar Fixo e Cintilante, um dos torturadores mais ensandecidos daqueles tempos de trevas. Pesquisadores
que passam os dias remexendo e catalogando folhas de papéis velhos nos arquivos públicos já haviam perdido
as esperanças de encontrar sua pista. Recentemente,
os jornais publicaram a fotografia de um tenente do Exército
divulgada pela Comisão da Verdade. O homem que aparece
na foto, copiada de um documento oficial, veste terno 
e gravata. Tem a pele muito branca, a face recoberta de uma tonalidade rósea avermelhada. E os olhos são de um azul
cintilante. Verdadeiramente inesquecíveis para quem com eles se deparou.
Seu nome é Antônio Fernando Hughes de Carvalho, apontado como um dos responsáveis pela tortura e morte 
do ex-deputado Rubens Paiva, em janeiro de 1971. 
Flecha Ligeira ainda continuava em serviço, já promovido
a capitão. A imagem do alemão com sua brancura peculiar
tostada pelo sol, do retrato falado feito por Adalto, 
é a mesma que surge na reprodução do documento oficial.
Outras testemunhas também o reconheceram. 
Seu sobrenome é Hughes. Os presos o registraram como
Hudson. para um provedor de iniquidades, a troca de nome
é apenas mais uma de suas variadas imposturas.

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