segunda-feira, 20 de março de 2017

Deixo para trás a cena kafkiana e reinicio a caminhada,
a passos lentos. Visualizo na paisagem velhas palmeiras
com sua folhagem ressequida, que não estavam
na minha memória. As lembranças que permanecem formam
um fragmentado mosaico em preto e branco, 
a cor da década. São imagens que trazem desassossego,
uma súbita falta de energia. 
Faço uma nova parada para tomar fôlego e me distraio
por alguns segundos. A claridade azul no céu é radiante.
Sopra um vento que ameniza a luz do sol. Alguém me da
um tapinha nas costas e me desperta, como se quisesse
me encorajar. Viro e dou de cara com o sorriso de Nadine,
uma das mulheres da Comissão da Verdade. Quer que eu marche à frente da tropa.
Mas o que me veio a cabeça neste instante e me distraiu 
por alguns segundos é a lembrança de um filme de Ettore
Scola. Um belo filme que jamais vou esquecer. Me detenho
numa cena em que Marcelo Mastroiani e Sophia Loren
estão conversando na janela de seu apartamento, enquanto
Benito Mussolini e Hitler desfilam de carro pelas ruas 
de Roma. Não estou em Roma, estou no Rio de Janeiro,
na Tijuca, no dia 23 de setembro de 2013, numa visita
de reconhecimento às instalações do Doicodi, mas tenho
a clara percepção de estar vivendo "Um Dia Muito Especial".
Na noite anterior não tinha conseguido pegar no sono,
pensando nos tropeços desta caminhada, no momento
em que ia penetrar na escuridão do túnel. 
De súbito me dou conta de que devo tomar a frente
deste inusitado ato, ainda que o tempo vire 
e caia uma tempestade. Não importa o que os militares 
que nos acompanham pensem. Os tempos são outros,
a situação exige que eu tenha serenidade, não pode ser
de outra maneira. Empreender um esforço para conter
o fluxo da memória e me equilibrar na corda bamba,
como se fosse um malabarista. As duas formações, de civis
e militares, avançam em marcha lenta. Aqui, agora, somos
todos iguais, paisanos e milicos. Seguimos em direção
ao fundo do pátio.
Na condição de testemunha, assumo o papel de guia
e tomo a frente do comboio. Mesmo que me falte coragem,
estou obrigado a cumprir o ritual, acossado pelo calor
desta segunda-feira, 23 de setembro de 2013. 
Avisto o sobrado de dois andares do Pelotão 
de Investigações Criminais e digo com convicção que é lá
a Estação Doicodi. Desembarquei ali duas vezes, algemado.
Diante do que se passou, os 43 anos decorridos tornam-se
uma pequena fração do tempo. Por fora, não mudou muito.
Pintado de verde e branco, janelas com grades e a inscrição
Pelotão de Investigações Criminais.
Um oficial toma a frente e diz que o prédio do DOI é o outro,
à nossa esquerda. Digo a ele que não, é este, eu já o havia reconhecido. Ele não insiste, aceita. A memória é uma propriedade particular da qual não posso abrir mão. Vejo
na porta dois soldados cabisbaixos, aguardando 
nossa chegada. Olho para o chão e percebo a minha própria sombra, como se estivesse me vigiando. As sombras brincam com a gente, mas às vezes assustam. 
Com mais calma, esclareço que na verdade são os dois.
Um para os interrogatórios e o outro, construído durante
a reforma, para abrigar o comando e a parte administrativa
do Doicodi, que precisou se expandir. São vizinhos.
A velocidade com que as sensações estão girando
podem tornar as coisas difíceis. O guia não precisa consultar
um mapa fisico para se orientar. Escuda-se no mapa cognitivo que traz armazenado no cérebro, 
com sua percepção inata de sentir o lugar onde se encontra.
E orientá-lo em sua navegação. A memória do túnel
com seus corredores tece uma trama que cria um vínculo
real com o mundo visível do presente. 

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