domingo, 23 de novembro de 2014

Foram os homens que nos levaram, Audalio Dantas
e eu, para a aldeia de Livramento no Estado da Parahyba
em julho de 1968.
Catadores de caranguejos saíam cedo na primeira luz,
levando suas canoas pelas águas grossas do estuário até
chegar no mangue - moradia, esconderijo e cemitério
marinho do caranguejo - emaranhado de estranhas populações de cabeças carapaças, unhas gordas, e obcenas
desempenhando precipitados lances na diagonal. Arrancados pelos homens da lama, lutam no espaço, mangue pingando mangue revoluteiam no ar.
Os homens sem luvas, pés amarrados com couro de boi
contra as lascas de conchas afundadas no chão,
dispersam-se pelos corredores do mangue apoiados
a raízes suspensas arqueadas em ogivais, nave inchada
e úmida de uma louca catedral. Fumaça de brasa acesa
sai das canecas que os homens levam para protegê-los
dos piuns que, volatizados em nuvem, comem a pele,
ferem o corpo e perturbam o olhar. O sol aparece suavemente, retido às folhas da vegetação. O cheiro de fumo, o cachimbo, a cabaça d'água, o chapeu de palha,
nos devolvem ao mundo, Livrados do mito desaparece 
a visão infernal. Os espíritos se afastam. O homem descansa. Horas passam e as sombras entram pelos corredores do mangue. O mangue inteiro gargareja.
A umidade e o suor correm pelos corpos soltando-se
num único vapor.
Os caranguejos, amarrados a vara por fios de cipó,
testemunham o trabalho feito. Os homens, colocando
suas varas atravessadas nos ombros ensaiam o regresso.
Como marinheiros em terra firme, recobram o equilíbrio
após longo tempo no mar.
No entanto são as mulheres os fundamentos de nossa
história. Entrando em cena o sol caído, contornam o rio
perto do arraial. Cestas balanceadas na cabeça, ondulam
o corpo e pisam, seguras no paso - garças que passam 
gritando alto, periquitos em bando grasnando no ar!
Corri atrás delas mal conseguindo seguir o seu ruidoso
rasto, cambaleando como um corpo sem alma, afundada 
até a cintura na lama, para enfim chegar ao templo do seu
estar. Meninas, mulheres e velhas, com seus vestuários
de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos,
subitamente transformadas em divindades pela lama -
faces polidas de pedra, revestidas das pregas movediças
do mar.
A menina de riso aberto, a beligerância da idade no olhar,
e a mulher de sorriso pálido permanecem imunes ao esforço
embrutecido da velha que, intocada e ausente a seu destino,
arrasta seu corpo gasto pelo chão.

Maureen Bisilliat
São Paulo - outubro de 1984

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