terça-feira, 4 de novembro de 2014

A FUNÇÃO DA ARTE
Andrei Tarkovski

Nem mesmo a Igreja é capaz de satisfazer essa sede
de Absoluto que caracteriza o homem, pois, infelizmente,
ela só existe como uma espécie de apêndice, copiando ou,
até mesmo, caricaturando as instituições sociais que organizam nossa vida cotidiana. No mundo atual, tão fortemente voltado para as coisas materiais e tecnológicas,
a Igreja não parece nem um pouco capaz de restabelecer
o equilíbrio através do apelo a um despertar espiritual.
Nesse contexto, parece-me que a função da arte seja a de
exprimir a liberdade absoluta do potencial espiritual do homem. Creio que a arte foi sempre a arma de que o homem
dispôs para enfrentar as coisas materiais que ameaçavam
devorar-lhe o espírito. Não é por acaso que, durante quase
dois mil anos de Cristianismo, a arte se desenvolveu, por
um enorme período de tempo, no contexto de idéias e objetivos religiosos. O simples fato de existir manteve viva,
na humanidade discordante e antagônica, a idéia da harmonia.
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A arte encarnou um ideal; foi um exemplo de perfeito equilíbrio entre princípios éticos e materiais, 
uma comprovação do fato de que esse equilíbrio não é apenas um mito que só existe nos domínios da ideologia,
mas algo que pode concretizar-se nas dimensões do mundo
dos fenômenos. A arte expressou a necessidade de harmonía do homem e sua presteza para lutar contra si mesmo, no interior da sua própria personalidade, numa
tentativa de alcançar o equilíbrio pelo qual sempre ansiou.
Uma vez que a arte exprime o ideal e a aspiração do homem
pelo infinito, ela não pode ser atrelada a objetivos consumistas sem ser violentada em sua própria natureza...
O ideal exprime coisas que não existem no mundo que
conhecemos, mas nos faz lembrar do que deveria existir
no plano espiritual. A obra de arte é uma forma dada a esse ideal que no futuro deve pertencer a humanidade, mas que,
no momento, deve ser patrimônio de poucos.
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A arte, está continuamente convidando as pessoas a fazerem uma reavaliação de si próprias e de suas vidas,
à luz do ideal a que ela dá forma.
O sentido da existência humana, definido por Korolenko
como o direito à felicidade, faz me lembrar do Livro de Jó,
onde se expressa um ponto de vista exatamente oposto:
"O homem nasce para o trabalho, como as faíscas das brasas se levantam para voar". Em outras palavras, o sofrimento faz parte da existência humana, e, na verdade, 
de que outra maneira seríamos capazes de "voar para o alto"? E o que significa o sofrimento? De onde se origina?
Da insatisfação, do abismo entre o ideal e o ponto em que
nos encontramos? Muito mais importante que sentir-se
"feliz" é afirmar a própria alma na luta por aquela liberdade
que é, no verdadeiro sentido, divina.

trecho extraído do livro ESCULPIR O TEMPO - Martis Fontes - SP 1990

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