terça-feira, 4 de novembro de 2014

A arte afirma tudo o que existe de melhor no homem,
a esperança, a fé, o amor, a beleza, a prece... Aquilo
com que sonha, as coisas pelas quais espera... Quando
alguém que não sabe nadar é lançado na água, o instinto
diz ao seu corpo quais movimentos deve fazer para salvar-se. O artista também é levado por uma espécie de instinto,
e sua obra leva mais longe a busca do homem por tudo que é eterno, transcendente, divino - muitas vezes a despeito 
da natureza pecaminosa do próprio poeta.
O que é a arte? È boa ou má? Vem de Deus ou do Diabo?
Da força do homem ou da sua fraqueza? Seria tal vez uma
promesa de comunhão, uma imagem da harmonia social?
Seria esta a sua função? Como uma declaração de amor:
a conciência da nossa mútua dependência. Uma confissão.
Um ato inconsciente que, não obstante, reflete o verdadeiro
sentido da vida - amor e sacrifício.
Por que, ao olharmos para trás, vemos a trajetória percorrida pela humanidade pontuada por desastres e cataclismos?
O que realmente aconteceu com todas aquelas civilizações?
Por que lhes faltou a respiração, por que perderam a vontade de viver e a força moral? Será possível acreditar que tudo aconteceu simplesmente em função de privações materiais? Esta sugestão parece-me grotesca. Alem disso,
estou convendido de que o fato de estarmos hoje na
iminência de destruir outra civilização pode ser perfeitamente explicado pela nossa incapacidade de levar em conta o lado
espiritual do processo histórico. Não queremos admitir para nos mesmos que muitas das desventuras que assediam a humanidade são o resultado de nos termos tornado imperdoáveis, culpados e irremediavelmente materialistas.
Ao nos vermos como os protagonistas da ciência, e para
tornarmos ainda mais convincente a nossa objetividade
científica, fragmentamos o processo unitário e indivisível
do desenvolvimento humano, e, ao fazê-lo, deixamos ao descoberto uma única mola (embora claramente visível),
que declaramos ser a causa principal de tudo, usando-a
não apenas para explicarmos os erros passados, mas
também para esboçarmos nossos projetos futuros. Ou talvez
a queda daquelas civilizações signifique que a história espera, pacientemente, que o homem faça a opção certa,
depois da qual ela não mais será levada a um impasse, nem será forçada a destruir uma tentativa frustrada atrás da outra, na espectativa de que a próxima possa ter mais sucesso. Há algo de errado na opinião amplamente difundida de que não se aprende nada com a história, e de que a humanidade ignora a experiência acumulada. Sem
dúvida, cada catástrofe sucessiva é uma prova de que a civilização em causa estava equivocada; e, quando o homem precisa começar tudo de novo, isso só pode ser
uma confirmação de que, até então, o seu objetivo não era
a perfeição espiritual.
Em certo sentido, a arte é uma imagem do processo que
já chegou ao fim, da culminação desse processo; uma imitação da posse da verdade absoluta (embora apenas
na forma de uma imagem), que desimpede o longo -
na verdade talvez interminável) caminho da história.
Há momentos em que anseia por repousar, ceder,
entregar-se por inteiro a alguma concepção integral do mundo - a dos Vedas por exemplo. O Oriente estava muito
mais próximo da verdade do que Ocidente, mas a civilização ocidental devorou o Oriente com as exigências materiais do seu estilo de vida.
Comparemos a música oriental com a ocidental. O Ocidente
está sempre aos berros: "Eis-me aquí! Olhem para mim!
Vejam-me sofrendo, amando! Como sou infeliz! Como sou feliz! Eu! Meu! Para mim!". Por sua tradição, o Oriente não
diz uma só palavra sobre si mesmo. O individuo deixa-se
absorver inteiramente por Deus, pela Natureza e pelo Tempo, encontrando-se em todas as coisas e descobrindo
todas as coisas em si próprio. Pensemos na música taoista...
Na China, seiscentos anos antes de Cristo... Mas por que, neste caso, uma concepção tão extraordinária não triunfou,
por que entrou em colapso? Por que a civilização que se desenvolveu a partir de tais bases não chegou até nós
na forma de um processo histórico consumado? Devem ter
entrado em conflito com o mundo materialista que os cercava. Assim como a personalidade entra em choque com a sociedade, aquela civilização chocou-se com outra. Foi
destruída não só por essa razão, mas também por causa do confronto com o mundo materialista do "progresso" e da
tecnología. Aquela civilização, porém, foi o ponto final do
verdadeiro conhecimento, o sal do sal da terra. E, segundo
a lógica do pensamento oriental, qualquer tipo de conflito é essencialmente pecaminoso.
Todos nós vivemos num mundo imaginário, criado por nos.
E assim, em vez de disfrutarmos seus benefícios, somos
vítimas de seus efeitos. A única coisa que a humanidade cria
com espírito desinteressado é a imagem artística.

extraído do livro ESCULPIR O TEMPO - Martins Fontes - SP 1990

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