terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Como não lembrar Macbeth? "Teu rosto, meu nobre, é um livro, onde os homens podem ler coisas". O que se lê,
tem-se lido no rosto do negro brasileiro durante mais de
um século? Esta é uma das questões suscitadas por retratos
de repente trazidos à luz, arrancados por acaso a "câmara
escura" da história. É uma questão e um desafio. Ninguém
penetra o sentido de uma fotografia sem arriscar-se ao confronto entre o real guardado pela imagem e o real do leitor-intérprete. Da materialidade físico-química do suporte
à vivência histórica que permite a captação do objeto (pelo
fotógrafo) e suas eventuais leituras (pelo contemplador),
vai um abismo que só o olhar preenche. Pois, esse outro real, se deu num certo espaço/tempo, e pode restituir-se aos meus olhos de modo perturbador, pode fazer com que se choquem a literalidade de uma cena, de uma pose, contra o "habitus" da minha percepção. O que nessas fotos me mobiliza é a evocação do problema do estatuto de pessoa do negro.
Aliás, a fotografia começou historicamente como uma arte da pessoa, de sua identidade, de sua propriedade civil, do que
se poderia chamar, em todos os sentidos de expressão,
o "quanto-a-si" do corpo.
Essas imagens cariocas, contemporâneas, dos princípios da fotografia, atraem o pensamento para a questão sempre presente da corporalidade negra.

Muniz Sodré

extraído do livro "Escravos Brasileiros do Século XIX na fotografia de Christiano Junior"

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