quarta-feira, 4 de abril de 2012


Prólogo para Marcos Ana
                                                                                                                             José Saramago

“Digam-me como é uma árvore, digam-me como é a justiça”. Digam para ele Como é uma árvore, porque o cárcere, como um vampiro insaciável, vai absorvendo pouco a pouco as lembranças do mundo exterior. Digam lhe como é a justiça, porque ali onde ele se encontra, entre quatro paredes imundas, ou ante um pelotão de fuzilamento, esta é uma caricatura indigna, uma burla grotesca, a própria máscara do opróbrio.       Não precisam lhe dizer como é a dignidade porque ele a conhece intimamente, com ela, ele se tem acostado e com ela tem se levantado; comeram na sua mesa ou lhe ofereceram sua fome; e entre umas e outras horas, enfrentando carcereiros e verdugos, fechando os lábios e os dentes sob terríveis torturas, esses homens inventaram a dignidade humana em lugares onde, segundo as severas normas dos criminais, deveriam acabar perdendo-a.  Este livro de Marcos Ana nos conta como isso ocorreu. Se apresentando como memória de uma vida é muito mais que isso, não só porque seu autor repele todas e cada uma das tentações de se olhar complacente ante o espelho, senão, porque na verdade, o rompe, para que em seus múltiplos fragmentos, se reflitam os rostos de seus companheiros de infortúnio. O eu aqui sempre, é o nós.
     Este livro é uma lição de humanidade, não porque seu projeto e seu propósito tenha sido de lecionar aos leitores a respeito do caminho reto, como se destas páginas se tivesse que deduzir um código de ética ou um manual de regras de moralidade pública e privada. De uma forma que é ao mesmo tempo descarnado e poético, Marcos Ana examina e descreve, com sutil bisturi e um estilo seguro de seus recursos, a vida na prisão, seus heroísmos e seus desfalecimentos, a solidariedade convertida em instinto, a valentia como um hábito, sem o qual não seria possível sobreviver ao inferno dos dias e das noites, ao medo das madrugadas que traziam a morte, a longa espera duma liberdade, que para muitos deles nunca chegou. Diz para nos como é uma árvore para que não duvidemos de que alguma coisa no mundo, fora de estes muros, segue lutando contra a infâmia, contra a mentira, contra a crueldade enlouquecedora dos inimigos da vida. Diz para nos como é a justiça e onde está, para que lhe possamos arrancar a venda dos olhos e assim possa ver, finalmente, a qualquer um que, de verdade, tem estado servindo, mas que não nos digam como é a dignidade porque isso nos já sabemos, porque inclusive quando parecia que não era mais que uma palavra, nada mais, entendemos que era a pura essência da liberdade no seu sentido mais profundo, esse que nos permite dizer, contra a própria evidencia dos fatos, que estavamos prisioneiros, mas éramos livres. Este livro chega como um sopro de ar fresco, que vem para derrotar o cinismo, a indiferença, a covardia. Também demonstra que existe uma possibilidade real de chegar à esfera do verdadeiramente humano. Marcos Ana tem estado ali. Esteve e estará enquanto ele viva. Agradeçamos lhe a singeleza, a naturalidade com que ele é um homem. Inteiro, autêntico, completo.      

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