terça-feira, 24 de outubro de 2017

Quando contemplei a aparição - pois como menos que isso
eu dificilmente podia encará-la - minha admiração 
e meu terror foram extremos. Até que enfim a reflexão
veio em meu auxílio. O gato, lembrei, fora enforcado
em um jardim adjacente à casa. Ao alarme de incêndio,
esse jardim fora imediatamente tomado pela multidão -
e alguém ali devia ter cortado a forca e jogado o animal
por uma janela aberta dentro do quarto. 
Isso provavelmente fora feito com o intuito de me despertar
de meu sono. A queda de outras paredes comprimira a vítima de minha cueldade na massa de alvenaria
recém-aplicada; a cal do reboco, sob a ação do fogo, 
combinara-se ao amoníaco da carcaça para executar
o esboço tal como eu o via.
Embora desse modo procurasse eu prontamente
prestar contas a minha razão, quando não, na medida 
do possível, a minha consciência, pelo fato alarmante
que acabo de descrever, isso tampouco deixou de causar
uma profunda impressão em minha imaginação. Por meses
não consegui me libertar da imagem fantasmagórica
do gato; e, voltou-me ao espírito um sentimento vago
que parecia, mas não era, remorso. Cheguei ao ponto 
de lamentar a perda do animal, e de procurar, nas sórdidas
tavernas que agora me habituara a frequentar, outro bichano
do mesmo tipo, e de aparência algo similar, com o qual suprir seu lugar.
Certa noite, enquanto eu me sentava, meio entorpecido,
num antro dos mais infames, minha atenção foi subitamente atraída por um objeto negro, repousando sobre a tampa 
de um imenso tonel de gin, ou rum, que constituía a principal
mobília do ambiente. Eu estivera a olhar fixamente 
para a tampa desse tonel por alguns minutos, e o que agora
causara minha surpresa era o fato de não ter percebido antes o objeto que estava sobre ele. 
Aproximei-me e o toquei com a mão. Era um gato preto -
muito grande - tão grande quanto Pluto, e muito parecido
com ele em todos os aspectos, exceto um. Pluto não tinha
um único pelo branco em todo o seu corpo; mas esse gato
exibia uma mancha branca enorme, embora indefinida,
a lhe cobrir toda a região do peito.
No momento em que o toquei, ele se levantou de imediato,
ronronou audivelmente, esfregou-se em minha mão
e pareceu deliciado com a atenção concedida. 
Aquela, então, era exatamente a criatura que eu estava procurando. Ofereci-me na mesma hora para adquiri-lo
junto ao dono; mas o homem afirmou que não lhe pertencia -
que nada sabia do bicho - nunca o vira antes.
Continuei com minhas carícias e quando me preparava
para voltar para casa o animal evidenciou disposição de me acompanhar. Permiti que o fizesse; parando ocasionalmente
e dando-lhe tapinhas carinhosos conforme andava. Quando
cheguei em casa, ficou à vontade na mesma hora
e imediatamente conquistou a predileção de minha mulher.
De minha parte, não demorou para que a repugnância começasse a crescer dentro de mim.  Isso era precisamente
o oposto do que havia esperado; porém - não sei dizer como
nem por que - sua evidente afeição por mim antes 
me repelia e irritava. Gradativamente, esses sentimentos
de repulsa e irritação evoluíram para a amargura do ódio.
Eu evitava a criatura; uma vaga sensação de vergonha
e a lembrança de meu antigo ato de crueldade impediam-me
de cometer algum abuso físico. Abstive-me, por algumas semanas, de aplicar-lhe maus-tratos ou usar violência
de qualquer espécie; mas, gradualmente - 
muito gradualmente - comecei a lhe devotar 
o mais inexprimível asco, e a fugir em silêncio de sua odiosa
presença como se fosse o hálito de uma pestilência.
O que contribuiu, sem dúvida, para o meu ódio do animal, foi a descoberta, na manhã subsequente à noite em que o levei
para casa, de que, como Pluto, ele também fora privado 
de um olho. Essa circunstância, entretanto, apenas o fez crescer em afeição perante minha esposa, que, 
como já disse, possuía, em elevado grau, essa humanidade de sentimentos que outrora havia sido meu traço característico, e a origem de muitos de meus prazeres
mais singelos e puros.
Com minha aversão, entretanto, o apreço desse gato 
por mim pareceu aumentar. Ele seguia meus passos 
com uma pertinácia que seria difícil fazer o leitor compreender. Sempre que me sentava, acomodava-se
sob minha poltrona, ou pulava sobre meus joelhos, 
cobrindo-me com suas detestáveis carícias. 
Se eu me levantava para andar, metia-se entre meus pés
e desse modo quase me derrubava, ou, cravando 
suas garras longas e afiadas em minha roupa, trepava, desse modo, até meu peito. Em momentos como esse,
embora desejasse com todas as forças matá-lo 
de um só golpe, eu era contudo impedido de o fazer,
em parte pela lembrança de meu antigo crime, mas principalmente - que eu o confesse logo de uma vez -
por absoluto pavor da criatura. 
Esse pavor não era exatamente o pavor de um mal físico -
e contudo me faltariam palavras para defini-lo de outro modo.
Tenho quase vergonha de confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso, tenho quase vergonha de confessar -
que o terror e o horror que esse animal me infundia haviam
sido aumentados por uma das mais simples quimeras
que seria possível conceber. Minha esposa chamara minha
atenção, em mais de uma ocasião, para o caráter 
da mancha de pelo branco, da qual falei, e que constituía
a única diferença visível entre o estranho animal e o outro
que eu matara. 
O leitor haverá de recordar que essa mancha,
embora grande, havia se mostrado originalmente 
muito indefinida; porém, mediante vagarosas gradações -
gradações quase imperceptíveis, e que por longo tempo
minha Razão lutou por rejeitar como fruto da imaginação -
assumira, finalmente, uma rigorosa precisão de contornos.
Era agora a representação de um objeto que tremo 
em nomear - e por isso, acima de tudo, nutria ódio, e pavor,
e teria me livrado do monstro caso ousasse - era agora,
afirmo, a imagem de uma coisa hedionda - de uma coisa
macabra - do PATÍBULO! - ah, pesaroso e terrível maquinismo de Horror e de Crime - de Agonia e de Morte!
E agora eu estava de fato desgraçado para além 
da desgraça da mera Humanidade. E uma criatura bruta -
cujo semelhante eu matara desprezivelmente - uma criatura
bruta engendrara para mim - para mim, um homem, 
feito à imagem do Deus Altíssimo - tamanho e insupotável
suplício! Ai de mim! nem de dia, nem de noite, conhecer
a bênção do Descanso! Durante o dia, a criatura não me deixava mais um momento sozinho; e, á noite, eu acordava, de hora em hora, com pesadelos de indizível medo, para dar
com o hálito quente da coisa sobre meu rosto, e seu vasto
peso - a encarnação de um Súcubo que eu era impotente
para repelir -  oprimido eternamente meu coração!
Sob a pressão de tormentos como esses, o tênue resquício
do que havia de bondade em mim cedeu. Pensamentos
malignos tornaram-se meus únicos companheiros - 
os pensamentos mais negros e malignos. 
Meu temperamento habitualmente taciturno evoluiu num ódio
por todas as coisas e por toda a espécie humana; ao passo
que das súbitas, frequentes e incontroláveis explosões de uma fúria à qual eu agora cegamente me abandonava minha
resignada esposa, ai de mim! era a mais habitual e a mais paciente das vítimas.
Certo dia ela me acompanhava, em algum serviço doméstico, ao porão da velha casa que nossa pobreza nos compelia a ocupar. O gato me seguiu pelos íngremes degraus e, quase me fazendo cair de frente, exasperou-me
ao ponto da loucura. Erguendo um machado, e esquecendo, em minha ira, o pavor infantil que até então detivera a minha mão, dirigi um golpe contra o animal que, sem dúvida, teria se provado instantaneamente fatal caso houvesse descido como eu desejara. Mas o golpe foi interrompido pela mão
de minha esposa. Instigado por essa interferência numa fúria mais do que demoníaca, liberei meu braço e enterrei 
o machado em seu cérebro. Ela tombou morta imediatamente, sem um gemido.
Executado o assassinato hediondo, procedi incontinente,
e com toda determinação, à tarefa de ocultar o corpo.
Eu sabia que não poderia removê-lo da casa, de dia 
ou de noite, sem o risco de ser observado pelos vizinhos.
Inúmeros planos passaram por minha mente. A certa altura,
pensei em cortar o cadáver em pequenos pedaços 
e destruí-los no fogo. Em outro momento, resolvi cavar um buraco para enterrá-lo no chão do porão. Depois considerei
a possibilidade de jogá-lo no poço do quintal - ou de fazer
um embrulho e encaixotá-lo, como se fosse uma mercadoria,
tomando as usuais providências, de modo 
que um carregador viesse levá-lo da casa. Finalmente,
ocorreu-me um expediente que julguei muito melhor que todos esses. Decidi emparedá-lo no porão - como ouvira
dizer que os monges da Idade Média faziam com suas vítimas.
Para um tal propósito o porão se prestava bem. 
Suas paredes eram construídas sem firmeza, e haviam recentemente recebido uma camada grosseira de reboco,
que a umidade do ambiente impedira de endurecer.
Além do mais, numa das paredes havia uma saliência,
causada por uma falsa chaminé, ou lareira, que fora preenchida, de modo a se parecer com o restante do porão. Não tive dúvida de que seria capaz de remover facilmente 
os tijolos nesse lugar, inserir o cadáver e reconstruir 
a parede como antes, de modo que olho algum detectasse
algo suspeito.

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