terça-feira, 13 de junho de 2017

Luis Trimano - foto: Wilton Montenegro


CURSO DE ILUSTRAÇÃO EDITORIAL
O Conto Ilustrado
LUIS TRIMANO
Ilustrações para "CERA" de César Vallejo 
hidrográfica e esferográfica
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"El Barco" - Edição virtual  - Rio de Janeiro 2017
  

CÉSAR VALLEJO
César Abraham Vallejo Mendoza
Santiago de Chuco, Perú 1892 - Paris, França 1938
Poeta e escritor de tendência vanguardista.
Um dos maiores poetas Hispano-Americanos 
do século XX, e o maior poeta peruano.
conferir extensa biografia na Wikipédia  
CERA
César Vallejo
 

Naquela noite não foi possível fumar.
Todos os fumeiros de ópio do bairro chinês de Lima
estavam fechados. Meu amigo que conduzia-me
pelos dédalos soturnos da conhecida mansão amarela
da rua Hoyos, onde há numerosos pontos onde se pode
fumar, despediu-se por fim, já aporcelanadas a alma
e a pituitária, pegou o primeiro bonde e perdeu-se
madrugada adentro.
Ainda me sentia um pouco bêbado após os últimos
goles, era minha boemia de então, bebedeira indisposta
sempre por balanços ímpares, enconchada de paladares
secos, o círculo da minha cara metade de homem
a dois pontos da realidade até as três laterais do impossível!
Mas perdoai-me esses desabafos que têm ainda um odor
bélico de perdigões fundidos nas rugas.
Dizia que me sentia bêbado ao encontrar-me só, caminhando sem rumo pelos bairros asiáticos da cidade.
Tudo se tornava mais claro no meu espírito. Fiz um balanço
do que acontecera comigo. A ansiedade pousou 
do lado esquerdo do peito, perfurando como uma máquina,
dando voltas e entrando fundo, transpassando-me
em todas as direções, envolvendo-me na cabeleira negra
e brilhante da minha noiva perdida para sempre. 
Não conseguia dormir, era impossível. Sentia a dor tênue
da minha felicidade mutilada, cujos brilhos eram trabalhados
agora pela tristeza cerrada e irremediável, que assomavam
ocultos nos mais fundos parênteses da minha alma,
como que dizendo com misteriosa ironia que amanhã sim,
como não, outra vez, que bom...
Senti vontade de fumar. Precisava aliviar minha crise
nervosa. Segui na direção do fumeiro de Chale,
que estava próximo.
Cheguei à porta com cautela, parei para ouvir. Nada.
Após breve espera, decidi sair dali quando ouvi alguém
saltar e caminhar descalzo pela habitação. Aguardei
para ver se havia algum companheiro. Pela fechadura
da porta pude distinguir uma luz e Chale sentado,
demonstrando irritação, diante de uma lamparina
cujo verdor patogênico se uniu ao semitom melancólico
da face do chinês tingida de furor. Não havia mais ninguém.
Dado o aspecto inexpugnável de Chale, que teria acabado
de despertar de algum pesadelo, achei que era inoportuna 
a minha presença e resolvi ir embora, mas o asiático abriu
uma das gavetas de uma mesa e, comandado por alguma voz interior e inexorável que se dispersava pelo corpo
inteiro num avanço resoluto, tirou de um estojo de cedro
polido, dois objetos alvos que surgiram entre as unhas
asquerosas e pungentes. Colocou-os na borda da mesa.
Eram dois pequenos blocos de mármore. Não sei por que,
desde o primeiro instante, e sem os tocar ou ver nitidamente,
as peças deram a impressão de atravessar o espaço,
caindo entre os meus dedos, produzindo a mais exata sensação do mármore.
O chinês segurou os dados novamente, enviesando no ar
olhares febris, como se estivesse num devaneio angustiado,
para que não mostrasse diante de mim as suposições
sobre a causa da sua vigília. 
Examinou os dados detidamente sob a luz. Sim, dois pedaços de mármore.
Sem abandoná-los, com o cotovelo sobre a mesa,
o olhar ébrio, murmurou algum monossílabo canalha
que espetou a sua alma, lacrimejando agora de ambição
mezclada com impotência. Retirou da mesma gaveta,
incitado por uma antiga firmeza que revivia pela centésima
vez, alguns instrumentos de aço e com eles começou a modelar os mármores.
Disse antes que algumas conjeturas surgiram diante de mim.
Conhecia Chale há dois anos. O asiático era um jogador muito afamado em Lima; perdera já muito dinheiro, 
mas ganhara muito mais. O que poderia significar esse tormento agora, esse episódio furibundo de artífice noturno?
E os pedaços de pedra? Por que dois e não um, três
ou mais? Eureka! Eram dois dados em elaboração.
O chinês esculpia, modelava noite adentro. Sua face forjava,
também, uma sucessão infinita de linhas. Houve momentos
em que Chale se exaltava e queria romper aqueles objetos
que iriam rolar sobre o veludo, perseguindo-se entre si,
à revelia da sorte e do azar, sob o rumor dos punhos fechados que batessem um contra o outro, até produzirem chispas.
Tal cena me interessara tanto que não quis sequér abandoná-la. Dirse-ia que se tratava de uma obra 
em progresso energético e paciente. E eu aguçava a mente,
perguntando-me sobre o que perseguiria aquele doente do destino. Burilar um par de dados. E daí?
Tanto se fala em prestidigitação, fraudes secretas
ou artificios no jogo que, sem dúvida, falei a mim mesmo, 
este homem prepara algo desse gênero. Mas o que mais
intrigava, como se compreenderá, era o meio usado,
em cuja correlação que devia preestabelecer entre o estilo
dos dados e as posibilidades dinâmicas das mãos. Porque
se não fosse necessária essa concorrência bilateral 
de elementos, o que levava o chinês a modelar os dados?
Qualquer material seria utilizável para esse fim. 
Mas neste caso, não.
Não há dúvida que os dados devem ser feitos
com determinado material, sob um peso específico,
e arestas com inclinações impalpáveis para serem lançados
com a ponta dos dedos. 
Devem ser polidos com outro achatamento ou uma aspereza
quase imaterial entre a marca e os pontos, 
ou entre um ângulo poliédrico e o exergo em branco
de uma das quatro faces correspondentes. É necessário
reproduzir a atitude da matéria aleatória para tornar possível
a sua sujeição e a docilidade das vibrações humanas,
sempre improvisadas, que triunfam por essa razão,
e que o mais hermético e cego dos avatares calcula.
Entretanto, era ver o asiático em sua tempestuosa lida criadora, com o cinzel em punho, picando, riscando,
partindo, revirando as condições da harmonia
entre as inatas proporções do lado e as ignoradas potências
de sua vontade mutável. 
Interrompia o trabalho por instantes, observava o pedaço 
de mármore e sorria, o rosto transfigurado, banhado pela luz da lamparina. Depois, mais tranquilo, trabalhava, trocava
de cinzel, fazia girar o dado, como se ensaiasse um lance,
confrontando as perspectivas com calma, e engendrando
planos. 
Poucas semanas depois daquela noite, houve quem
comentasse coisas incríveis sobre fatos que aconteceram
recentemente nas casas de jogo de Lima. Dia após dia
as lendas fabulosas aumentavam. Numa tarde do último
inverno, na porta do Palais Concert, um personagem exótico
falava a um grupo de pessoas que o ouviam com atenção:
- Chale para poder ganhar esses dez soles, não jogou limpo.
Não sei como, mas o chinês manobra uma prestidigitação
misteriosa na mesa de dados. Isso não há como negar.
Observem - sublinhou o homem com uma gravidade sombria
- que os dados com que o chinês joga, jamais aparecem nas mãos de outro jogador. Falo de antecedentes inequívocos
e da minha própria observação. Os dados têm alguma coisa,
enfim, não sei...
Fiquei inquieto uma noite na sala onde Chale jogava.
Era uma casa de jogo que se dedicava aos mais extraordinários duelos de dados. Havia muita gente
em torno da mesa, a atenção de todos guiada
para o tecido ganglionado da mesa cheia de apostas,
revelou-me que essa seria uma noite agitada. 
Alguns amigos entusiastas animaram-me a arriscar.
Chale estava lá. Parecia presidir a sessão, à cabeceira
da mesa, com seu semblante impassível e torturante:
duas correias pelo pescoço, caindo dos parietais,
de pelagem rala, até as clavículas lívidas; a boca desenhando a cobiça com os dois lábios, que não sorriam jamais, como se tevessem medo de revelar-se; uma camisa
de manga até o cotovelo. O grito de vida saltava de um pulso
a outro, como se buscasse as portas das mãos para escapar
de um corpo tão miserável. A lividez repugnante impregnara
as maçãs do seu rosto.
Dir-se-ia que perdera a faculdade de falar. Sinais, advérbios
quase inarticulados; interjeições arrastadas. 
Oh, como queima, às vezes, a respiração branquial
daquele que está morto e no entanto permanece vivo dentro de cada um de nós!
Resolvi observar, com sutileza e atenção, as mais tênues
ondas psicológicas e mecânicas do chinês.
Era quase uma da madrugada.
Alguém apostou mais de cinco mil soles. O ar esquentou
como a água quente em ebulição. Se quisesse descrever
como estavam os rostos dos circunstantes naqueles segundos, diria que todos se baixaram e foram oprimidos
e tocados pelos dados de Chale, inflamando-se 
e aguçando-se ali, até urgir e querer arrancar uma novena
de cada lado, com um ansiado riso do destino. Chale lançou
os dados com tal violência, como um par de brasas
que chispassem, e deu um grito ríspido que parecia cheirar
a carne podre.
Apalpei meu próprio corpo, e dei-me conta de que estava tremendo de medo. O que o chinês havia sentido?