terça-feira, 24 de outubro de 2017

Para a narrativa sumamente extravagante e contudo
sumamente trivial em que tomo da pena, não espero
nem peço crédito. De fato, louco seria eu de esperar
tal coisa, num episódio em que até meus próprios
sentidos rejeitam o que testemunharam. Contudo,
não estou louco - e, decerto, tampouco estou sonhando.
Mas amanhã morrerei e hoje quero desafogar minha
alma. Meu propósito imediato é expor diante do mundo,
de modo direto, sucinto e sem comentários, uma série
de simples eventos domésticos. Por suas consequências,
esses eventos me aterrorizaram - torturaram - destruíram.
Contudo, não farei uma tentativa de explicá-los. Para mim,
pouco representam além do Horror - para muitos, parecerão
menos terríveis do que barrocos. 
Num futuro próximo, tal vez, algum intelecto haverá de surgir
para reduzir minha fantasmagoria ao lugar-comum -
algum intelecto mais calmo, mais lógico e muito menos
excitável do que o meu, que perceberá, nas circunstâncias
por mim detalhadas com assombro, nada mais do que uma ordinária sucessão de causas e efeitos perfeitamente naturais.
Desde a infância sempre me fiz notar pela docilidade 
e humildade de meu temperamento. 
Minha ternura de coração era de fato tão evidente 
que me tornava objeto de troça de meus companheiros.
Tinha particular afeição por animais e fui mimado 
por meus pais com uma grande variedade de bichos de estimação. Com eles passava a maior parte do tempo
e nunca me sentia tão feliz como nas ocasiões em que os alimentava e acariciava. Essa peculiaridade de caráter
acompanhou-me ao crescer e, mais tarde, quando me tornei um homem, dela extraía uma das minhas principais fontes
de prazer. Para aqueles que acalentaram afeição por um cão
fiel e esperto, dificilmente preciso me dar ao trabalho
de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação 
que disso pode advir. Há qualquer coisa no amor altruísta
e abnegado de uma criatura bruta que cala fundo no coração
de quem muitas vezes já teve ocasião de experimentar
a amizade mesquinha e a fidelidade impalpável do mero Homem.
Casei-me cedo, e tive a felicidade de encontrar em minha
esposa uma disposição não incompatível com a minha própria. Observando meu apreço pelos animais domésticos,
ela não perdia a oportunidade de obter os tipos mais agradáveis. Tivemos pássaros, peixes dourados, um ótimo
cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal notavelmente grande e belo,
todo negro, e esperto em um grau espantoso. 
Falando de sua inteligência, minha esposa, que no fundo
não era pouco imbuída de superstição, fazia frequente
alusão à antiga crença popular que via em todos os gatos
pretos bruxas disfarçadas. Não que em algum momento falasse a sério nesse sentido - e não toco no assunto 
por nenhum outro motivo além de acontecer, bem agora,
de me vir à memória.
Pluto - esse o nome do gato - foi meu bicho companheiro
favorito. Somente eu o alimentava, e ele me seguia pela casa aonde quer que eu fosse. Era mesmo com dificuldade
que conseguia impedi-lo de seguir-me pelas ruas.
Nossa amizade durou, desse modo, por vários anos,
durante os quais meu temperamento geral e caráter -
por obra do Demônio da Intemperança - experimentaram
(coro em confessar) uma radical alteração para pior.
Tornei-me, a cada dia, mais taciturno, mais irritável,
mais sem consideração pelos sentimentos alheios. 
Permitia-me o uso de uma linguagem destemperada com minha mulher. Por fim, cheguei até a ameaçá-la de violência
física. Meus bichos, é claro, também sofreram com minha 
mudança de disposição. 
Eu não só os negligenciava, como também os maltratava.
Por Pluto, entretanto, ainda mostrava suficiente consideração para me abster de infligir-lhe maus-tratos,
como fazia com os coelhos, o macaco ou mesmo o cão,
quando por acidente, ou tal vez por afeto, entravam em meu caminho. Mas a doença ganhou corpo em mim - 
pois que doença se compara ao Álcool? - 
e no fim até mesmo Pluto, que a essa altura estava ficando velho e, consequentemente, um tanto malcriado - até mesmo Pluto começou a experimentar os efeitos de meu temperamento irascível.
Certa noite, voltando para casa, muito embriagado, 
de uma de minhas tavernas pela cidade, julguei que o gato
evitava minha presença. Agarrei-o; nisso, em seu medo de minha violência, ele me infligiu um leve ferimento na mão
com os dentes. A fúria de um demônio apossou-se
instantaneamente de mim. Eu não mais me reconhecia.
Minha alma original pareceu, na mesma hora, levantar
voo de meu corpo; e uma malevolência 
mais do que diabólica, inflamada a gim, convulsionou 
cada fibra de meu corpo. Tirei do bolso do colete 
um pequeno canivete, abri-o, agarrei o pobre animal 
pela gargante e deliberadamente arranquei
um de seus olhos da órbita! Coro, enrubesco, estremeço
conforme descrevo a abominável atrocidade.
Quando a razão me voltou pela manhã - após ter dissipado no sono os vapores do desregramento noturno -
experimentei um sentimento que era parte horror, parte remorso pelo crime do qual era culpado; mas foi,
quando muito, um sentimento fraco e ambíguo, 
e a alma permaneceu intocada. 
Voltei a mergulhar em excessos e não tardei a afogar na bebida qualquer lembrança do ato.
Entrementes, o gato lentamente se recuperou. A órbita
do olho perdido apresentava, é verdade, uma aparência assustadora, mas ele não parecia sentir mais dor alguma. 
Andava pela casa como de costume, mas, 
como era de se esperar, fugindo aterrorizado à minha aproximação. Restava-me suficiente de minha antiga afeição para que no início ficasse magoado com esse evidente repúdio de parte de uma criatura que outrora 
tanto me amara. Mas esse sentimento em breve deu lugar 
à irritação. E então sobreveio, como que para minha ruína final e irrevogável, o espírito da PERVERSIDADE.
Desse espírito a filosofia não se ocupa. Contudo, não tenho
tanta convicção sobre a existência de minha alma quanto tenho de que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das indivisíveis e primordiais
faculdades, ou sentimentos, que orientam o caráter
do Homem. Quem nunca se pegou, uma centena de vezes,
cometendo algum ato vil ou tolo sem nenhum outro motivo
além de saber que não deveria? 
Não mostramos uma perpétua inclinação, malgrado todo o nosso bom-senso, a violar essa coisa que chamamos Lei,
meramente porque a compreendemos como tal?
Esse espírito de perversidade, como disse, 
veio para minha ruína final. Foi esse inescrutável anseio
da alma de atormentar a si mesma - de violentar sua própria
natureza - de cometer o mal em nome do mal simplesmente,
que me impeliu a continuar e finalmente consumar o agravo que já infligira à inofensiva criatura. Certa manhã, a sangue
frio, passei um laço em torno de seu pescoço e o enforquei
no galho de uma árvore; - enforquei-o com as lágrimas
brotando de meus olhos, e com o remorço mais amargo no coração; - enforquei-o porque sabia que me amara,
e porque sentia que não me dera o menor motivo 
para ressentimento; - enforquei-o porque sabia 
que ao fazê-lo estava cometendo um pecado - um pecado
mortal que poria minha alma imortal em perigo a ponto
de deixá-la - se tal coisa era possível - fora de alcance 
até da misericórdia infinita do Deus Mais Misericordioso
e Mais Terrível.
Na noite do dia em que perpetrei essa cruel infâmia,
fui despertado do sono pelos gritos de fogo. As cortinas
de minha cama estavam em chamas. A casa toda ardia.
Foi com grande dificuldade que minha esposa, uma criada
e eu próprio conseguimos escapar da conflagração.
A destruição foi completa. Todas minhas posses terrenas foram consumidas e entreguei-me dali em diante 
ao desespero.
Não cedo à fraqueza de tentar estabelecer uma sequência
de causa e efeito entre o desastre e a atrocidade. Mas estou
descrevendo uma cadeia de eventos - e não desejo
deixar de fora nem sequer um possível elo. 
Certo dia após o incêndio fiz uma visita às ruínas. 
As paredes, com exceção de uma só, haviam desabado.
Essa exceção consistia de uma parede divisória interna, não muito grossa, mais ou menos no meio da casa, contra a qual
ficava recostada a cabeceira de minha cama. 
O reboco havia, em grande parte, resistido à ação do fogo -
ocorrência que atribuí ao fato de ter sido recentemente
aplicado. Em torno dessa parede uma compacta multidão
havia se reunido e muitas pessoas pareciam examinar 
uma área particular dela com atenção extremamente minuciosa e intensa. As palavras "estranho!", "singular!"
e outras expressões similares atiçaram minha curiosidade. Acerquei-me e vi, como que gravado em bas relief sobre
a superfície branca, a figura de um gigantesco gato.
A imagem se estampava com uma precisão realmente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço
do animal.

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