terça-feira, 19 de agosto de 2014

A RESPONSABILIDADE DO ARTISTA
Andrei Tarkovski

Para começar, gostaria de retomar a comparação,
ou melhor, o contraste entre literatura e cinema.
a única característica comum entre estas duas
formas de arte inteiramente autônomas
e independentes é, a meu ver, a maravilhosa
liberdade de usar o material como querem.
Já falei antes sobre a dependência mútua entre
a imagem cinematográfica e a experiência do autor
e do espectador. A prosa também, naturalmente,
conta com a experiência emocional, espiritual
e intelectual do leitor, como qualquer outra arte.
Mas o peculiar na literatura é que por mais minuciosos
os detalhes colocados pelo autor em uma página, ainda assim o leitor irá "ler" e "ver" somente aquilo para que foi
preparado pela sua - e só sua - experiência, pela conformação do seu caráter, já que estas formaram 
as predileções e idiossincracias do gosto que se tornaram
parte dele. Nem mesmo as passagens en prosa mais naturalista e detalhadas permanecem sob o controle
do artista: aconteça o que acontecer, o leitor irá percebê-las
de maneira subjetiva.
O cinema é a única forma de arte em que o autor pode se considerar como o criador de uma realidade não convencional, literalmente, o criador do seu próprio mundo.
No cinema, a tendência inata do homem
para a auto-afirmação encontra um dos seus meios 
de realização mais completos e diretos. 
Um filme é uma realidade emocional, e é assim que a plateia
o recebe - como uma segunda realidade.
Por esse motivo a concepção amplamente difundida do cinema como um sistema de signos parece-me profunda
e essencialmente errada. Percebo uma premisa falsa
na própria base da abordagem estruturalista.
Estamos falando sobre os diferentes tipos de relação
com a realidade sobre os quais cada forma de arte fundamenta e desenvolve seu sistema específico de
convenções. Nesse aspecto, coloco o cinema e a música
entre as artes imediatas, já que não precisam de linguagem
mediadora. Este fator determinante fundamental sublinha o parentesco entre música e cinema e, pelo mesmo motivo,
afasta o cinema da literatura, onde tudo é expresso através da linguagem, de um sistema de signos, de hierogligos.
A obra literária só pode ser recebida através de símbolos, de conceitos - pois é isso que as palavras são; mas o cinema,
como a música, permite uma percepção inteiramente imediata, emocional e sensível da obra.
Através das palavras, a literatura descreve um acontecimento, um mundo interior, uma realidade externa que o autor deseja reproduzir. O cinema utiliza-se dos materiais oferecidos pela própria natureza, pela passagem do tempo, manifestos dentro do espaço que observamos
ao nosso redor e no qual vivemos. Certa imagem do mundo
surge na conciência do escritor, e ele então, através de palavras, a transporta para o papel. Mas a película cinematográfica imprime mecanicamente os traços do mundo incondicional que entram no campo de visão da câmera, e a partir deles é posteriormente construída uma imagem do todo.
(continúa)

ANDREI TARKOVSKI - Cena de "A Infancia de Iván"


Amigos, no meio das aulas do curso
eu postei alguns trechos de um livro
do diretor de cinema russo Andrei Tarkovski
intitulado Esculpir o Tempo, onde discute
a relação do artista com o público espectador,
no caso do cinema, e leitor, quando nos referimos
a palavra escrita e a ilustração, seja na literatura,
seja no jornalismo. Eu já citei que a minha primeira
escola de artes visuais, foi o cinema que assistia
quando criança muito antes de estudar arte. E sempre relacionei o cinema, com os quadrinhos pela sequencia, e com a ilustração pela montagem.
A seleção do material para a realização de uma ilustração:
escolha dos cenários onde se passa a história, vestuário
e tipos físicos dos protagonistas, é a mesma que faz
um diretor de cinema para montar seu filme.
Nesse sentido, a dedicação e a espectativa sobre 
as pessoas que recebem o nosso trabalho, é a mesma em qualquer artista, e as questóes levantadas pelo Tarkovski
valem tanto para o cineasta quanto para o ilustrador.