segunda-feira, 12 de junho de 2017

"CERA" - VALLEJO


"CERA" - VALLEJO


"CERA" - VALLEJO


Por que lançou os dados daquela maneira,
como se houvessem queimado o cortado as suas mãos?
Os jogadores, como é natural, diante de uma aposta tão alta
teriam ficado impressionados?
Enquanto os dados permaneceram abandonados
sobre o veludo cor de esmeralda, vieram a minha memória
os dois pedaços de mármore que vi Chale modelar
naquela noite longínqua. Os dados que via agora provinham
com certeza daquelas pedras, eram mármores alvos
e translúcidos nas bordas, com um brilho firme, 
quase metálico no fundo. Belíssimos cubos de Deus!
O chinês, após a vacilação fugaz, recolheu outra vez
os dados e continuou jogando, não sem algum tremor
convalescente na têmpora que só eu percebi.
Segurou os dados, mexeu-os, voltou a lançar dois,
três, quatro, cinco, seis, sete, oito vezes. Na nona conseguiu
uma quina e uma sena.
Todos pareciam ter ficado mais soltos e ressucitaram,
tornaram-se mais humanos. Alguém pediu um cigarro;
tossiram. Chale pegou mil quinhentos soles. Suspirei,
engoli a saliva. Fazia calor.
Novas apostas foram feitas, e continuou a trágica disputa
da sorte contra a sorte.
Notei que a derrota de Chale não o transformara
nem um pouco, circunstância que lançava mais sombra
de mistério sobre a razão de seu imprevisto rapto de ira
anterior que não poderia atribuir-se a algum ardor nervoso, sem motivo, solapava meu espírito com crescentes ardis
sobre as possíveis relações do chinês com correntes
ou potências para além dos fatos e da realidade. Até onde
Chale poderia manipular o destino a seu favor, por meio
de uma técnica sábia e infalível no manejo dos dados?
No primeiro jogo que se seguiu ao de cinco mil soles,
valor similar foi apostado novamente. Varias pessoas
apostaram valores inferiores a quinhentas libras. 
O ambiente de contenda tornou-se mais hostil 
para o banqueiro.
Os dados saltaram da mão direita do asiático,
em simultâneo, dotados de um impulso parecido. 
Com um instrumento de medida que pudesse registrar
as cifras inomináveis as equações humanas criadoras
de ações infinitesimais, constatou-se a simultaneidade
absolutamente matemática com que ambos os mármores
foram lançados no espaço. Poderia jurar que, ao auscultar
a relação de avanço que se desenvolvia entre esses dois dados ao iniciarem o voo, o que há de mais permanente,
vivo, pujante, inabalável e eterno em meu ser, fundidas
todas as potências da dimensão física, deu-se contra 
si mesmo, e assim pude sentir no espírito o lançamento dos dois ao mesmo tempo.
Chale havia lançado os dados restringindo toda sua
escultura numa curva anatômica rara e singular, que turvou
ainda mais minha sensibilidade sugestiva. Diria que nesse
momento havia o jogador estilizado em toda a sua animalidade, subordinando-a a um pensamento e desejo
únicos naquele momento do jogo.
Com efeito, como descrever semelhante movimento
do seu flanco ossudo, apoiando-se sobre a própria 
balbúrdia do silêncio suspenso entre as duas pedras
a caminho? Um ritmo semelhante das omoplatas
transfigurava-se, como se incubasse asas que logo cresciam
e saltavam para fora, diante da cegueira de todos
os jogadores que não percebiam nada disso e me deixavam
só na presença daquele espetáculo que castigava o coração!
Aquela confluência do ombro direito, calma, esperando
que a testa do chinês  acabasse de fazer todo o arco
que a intuição e o cálculo mental de forças, distâncias,
obstáculos, elementos aceleradores e até o máximo 
de intervenção de uma segunda potência humana moderavam, estendiam, ajustavam desde o ponto mais alto
da vontade vidente do homem até o movimento demarcado da onipotência divina...
E essa mão macilenta e ambarina, neurótica, mágica,
quase translúcida sob a luz que parecia portar e transmitir
a vertigem dos dados, que esperavam na concha das mãos,
saltando, hidrogênicos, palpitantes, cálidos, brandos, 
submissos, transubstanciados, tal vez, em dois pedaços 
de cera que só se deteriam num ponto do tecido estendido,
secretamente solicitado, plasmados pelos dois lados
que se ligam ao jogador... a presença completa de Chale
e toda a atmosfera de extraordinária e ineludível soberania
que se desenvolveu na sala naquele instante, envolveu
também, como um átomo no meio do fogo solar do meio-dia.
Os dados voaram perfeitos, rolaram friccionando-se, patinando, saltando isócronos, com o ritmo pulsante de dois
tambores que ritmassem o dobre da marcha 
que já não podia voltar atrás, apesar do próprio Deus,
ante os olhares daquela estância solene e recolhida
como uma igreja na hora da hóstia sagrada...
Uma linha vibrante e grisada moldava cada lado ao girar.
Uma dessas linhas começou a engrossar, desdobrou-se
em manchas mais brancas do que outras; desenhou
uma sucessão de dois pontos, depois cinco, quatro, três
e plantou-se marcando a quina. O outro pedaço de mármore,
oh as costas e o flanco, o homem e a cara do jogador!
Oh o lance simultâneo dos dados! Um mármore avançou
três vezes mais de que o outro, e num processo parecido
de evolução em direção da meta insuspeitada, apresentou
também cinco pontos sobre o veludo. Que sorte!
O chinês, com a serenidade de quem interpreta um enigma
cujo significado já conhecesse há muito tempo, arrebatou
para a sua banca os cinco mil soles da rodada.
Alguém anunciou a meia voz:
Que coisa! As apostas mais altas saem sempre para Chale
ninguém consegue vencê-lo. 

"CERA" - VALLEJO


"CERA" - VALLEJO


"CERA" - VALLEJO


O Chinês, repeti a mim mesmo, não há dúvida,
tem o domínio completo dos dados que ele mesmo
esculpiu, é dono e senhor dos mais indecifráveis
designios do destino, eles o obedecem incondicionalmente.
Os mais poderosos jogadores enfureceram-se 
e queixaram-se de Chale, após a última jogada. A sala
inteira se agitou num arroubo de despeito; o protesto
amordaçado dessa massa de seres que fora golpeada
pela sombra invencível do destino, encarnada na figura
fascinante de Chale, esteve a ponto de se transformar
num banho de sangue. Um só grande infortúnio pode mais
do que milhares de triunfos dispersos, e os atrai e prende
às suas entranhas enfurecidas até serem untados
com azeite incandescente e funéreo. Todos esses homens
sentiam-se feridos com a última vitória do chinês, e todos
lhe haviam arrancado a vida aos trancos. Eu mesmo -
incitado pelo despeito - odiei o Chale com todo rancor
naquele instante. 
Seguiu-se uma rodada de dez mil soles. Todos tremeram
de espectativa, medo e uma misericórdia infinita,
como se fôssemos presenciar algo grandioso. A tragédia
se revolvia, sôfrega, ao longo da pele. As pálpebras
tremeram, quase vertendo lágrimas puras. Os rostos
tornaram-se azul-violáceos de incerteza. Chale jogou
os dados. E só com este lance, duas cenas surgiram 
sobre o veludo. Que sorte!
Percebi alguém abrindo caminho ao meu lado, afastando-me
para chegar até a mesa, pressionando-me de forma brutal,
como se uma energia irresistível e fatal impulsionasse
o intruso a tal procedimento. Quem estava ao meu lado
sofreu a mesma humilhação provocada pelo desconhecido.
O chinês em vez de recolher o dinheiro que ganhara
revelou o maior desprezo, e como que movido 
por um recurso, virou o rosto imediatamente em direção
do novo concorrente. Chale mudou de fisionomia.
Os olhares dos homens chocaram-se, como dois bicos
de ave que se tocassem no ar.
O forasteiro era um homem alto e de proporção harmoniosa;
um grande crânio numa cabeça munida de um maxilar
inferior que repousava recolhido e armado 
por uma dentadura capaz de mastigar cabeças e troncos
inteiros. O declive das bochechas alargava-se de cima
para baixo. Os olhos pequenos recuavam para logo
acometer em insuspeitas investidas; as pupilas sem cor
pareciam duas conchas vazias; a pele bronzeada,
cabelos soltos, nariz adunco, testa agitada. 
Parecia provocante, detentor de sugestões sedutoras.
O homem causava uma apreensão mortificante,
apesar da beleza. Qual era sua origem? Não revelava
nenhuma. aquele peregrino não posuia nenhuma pátria étnica.  
Tinha um inegável traço mundano de jogador
irrepreensível, com seu vestir correto, a distinção
e o desenfado requerido pelos seus modos.
Logo que esse personagem ocupou seu espaço 
na mesa de jogo, todo o gás envenenado de embriagês
e cobiça que respirávamos na sala se dissipou 
de imediato. 
Que oxigênio secreto trazia aquele homem? Se pudesse
descrever o ar, diria que era sereno e agradavelmente azul.
Recobrei a consciência, entre um sopro fresco 
de renovação sanguínea e alívio. 
Senti que me libertava de algo. Houve um remanso 
no semblante de todos. O poder de Chale e todas as suas posturas de sortilégio terminaram.
Contudo, alguma coisa começara agora, uma sensação
de curiosidade primeiro, depois de penosa inquietação
provocada, sem dúvida, pela presença do novo jogador.
Sim, pois, ele trazia um propósito esmagador,
algum desígnio inexplicável.
O asiático estava transformado, desde que viu 
o desconhecido não voltou a encará-lo. Eu podia
jurar que ficou com medo e que nele, mais do que em qualquer outro, o efeito repulsivo e a aversão
que o homem despertava, foi muito maior para dissimular.
Chale o odiava, sentia temor. Essa é a palavra: tinha medo.
Além do mais, ninguém havia visto o cavalheiro
naquela casa de jogo. Chale nem sequer o conhecia,
por essa razão odiava a sua presença.
O apostador começou a respirar com dificuldade,
como se estivesse asfixiado. Arquejava olhando fixamente
o chinês que parecia triturado por aquele olhar, destruído,
reduzindo a carvão barato toda a sua personalidade moral,
a confiança em si mesmo, a sua beligerância triunfadora.
Chale, perplexo como um menino pego em flagrante,
movia os dedos na concha da sua mão direita hesitante,
como se desejasse que caíssem impotentes.
O círculo, aos poucos começou a convergir os olhares
para o forasteiro que ainda não pronunciara nenhuma
palavra. Fez-se silêncio.
Por fim, o recém-chegado disse, dirigindo-se ao chinês:
- Quanto tem em sua banca?
Chale piscou fazendo um trejeito apocalíptico e ridículo
de desamparo, como se fosse receber uma bofetada
mortal. Virando-se, balbuciou algo, sem saber o que dizia.
- Está tudo aquí. 
A banca contabilizava mais ou menos cinquenta mil soles.
O desconhecido mencionou a soma, retirou um valor igual
da sua carteira e com superioridade dispôs sobre a mesa,
efetuando sua aposta diante do espanto dos circunstantes.
O chinês mordeu os lábios e, evitando sempre o rosto
do adversário, mexeu os seus cubos de mármore.
Ninguém quis acompanhar a aposta ousada e monstruosa.
O único apostador solitário, sem ninguém que, absolutamente ninguém senão o chinês, pudesse admoestá-lo, tirou do bolso o seu revólver, e aproximou-o
da cabeça de Chale, com o dedo no gatilho. 
Ninguém, repito, percebeu essa espada de Dámocles
que ficou suspensa sobre a vida do asiático. Pelo contrário,
todos viram o perigo pendente sobre a fortuna 
do desconhecido, pois a sua derrota estava determinada.
Lembrei o que antes sussurraram na sala:
- As apostas mais altas vão sempre para Chale. Ninguém
consegue ganhar dele.
Era  sorte? Conhecimento? Não sei. Mas agora eu era 
o único que previa a vitória do chinês.
Ele lançou os dados. Oh o flanco e a costa, o ombro
e o semblante do jogador! De novo, e com mais eloquência,
repete-se diante dos meus olhos e da minha alma,
o espetáculo magnífico, a curva anatômica, a polarização
de toda a vontade que dirige, doma e subjuga
os mais inextricáveis designios do destino. De novo essa
partida simultânea dos dados diante dos mesmos termos
aleatórios da aposta. Abri os olhos para verificar se a sorte
iria agraciar mais uma vez aquele jogador exímio.
Os mármores rolaram, rolaram.
O revólver aguardava. O apostador não olhava os dados:
mirava apenas, fixo, implacavelmente  terrível, a testa
do asiático.
Diante do desafio, que ninguém notava, do revólver
contra o par de dados que pintaria o número se unindo
à invencível sombra do destino, encarnada na figura
de Chale, qualquer um poderia assegurar que eu
permanecia ali. Mas não, não estava.
Os dados pararam. A morte e o destino deixaram todos
boquiabertos.
Dois ases!
O chinês começou a chorar como uma criança.

tradução: Jorge Simões

"CERA" - VALLEJO


"CERA" - VALLEJO