sábado, 28 de julho de 2012

foto: Juan Rulfo


Anos mais tarde, com a ausência de um tratamento oportuno,
agravou-se a sua demência de uma maneira quase mortal,
chegando ao mais truculento e edificante drama do homem
que sustém um triângulo de dois ângulos, que morde o cotovelo,
ri diante da dor e chora perante o prazer. Urquizo chegou a vagar
além das fendas eternas, onde correm para se agrupar na harmonia
e plenitude do som os sete matizes centrais da alma.
Entretanto, encontrei-o uma tarde. Desde que o vi, pouco antes de
cruzarmos, despertara na minha desabituada indulgência sobre
aquele desgraçado que, alem do mais, era meu primo em não sei
qual remota consanguinidade materna. Ao lhe ceder o caminho
para passar e saudá-lo, tropecei nas pedras da rua e enconstei
o meu braço no dele. Urquizo protestou indignado:
- Está louco?
A exclamação sarcástica do alienado fez me rir, e depois foi motivo 
de interrogações quando os mistérios da razão se transformam
em espinhos, estagnando no cerrado e tormentoso círculo
da lógica fatal entre os dois lados da cabeça.
Po que esta forma de indução em atribuir-me o descompasso
de parafusos que só ele possuía?
Com efeito, esse último sintoma transpassava já os limites da
alucinação sensorial. Isso era transcendente, sem dúvida,
já que representava nada menos do que um juízo,
o entrelaçamento de fios profundos, um lado da consciência.
Urquizo devia, pois, acredita nas suas capacidades,
estava perfeitamente seguro disso e, desde esse ponto de vista,
era eu o verdadeiro louco por ter esbarrado nele sem motivo.
Seguia esse plano de raciocínio que se denuncia em quase todos
os alienados, um plano que,por sua desconcertante ironia,
fere e escarnece dos órgãos mais cordatos até tirar-nos toda rédea mental
e varrer todos os ritos da vida.
Por isso, a surda exclamação do louco cravou-se de tal maneira
em minha alma, chegando a comover meu coração.  

foto: Juan Rulfo - detalhe


Luís Urquizo pertencia a uma familia numerosa da região.
Era muito querido pelos seus, que lhe prestavam todo quidado
a a assistência carinhosa. Certa vez, fiquei sabendo de algo
assustador. Todos os familiares de Urquizo que com ele conviviam,
estavam loucos também. E mais. Todos eram vítimas de uma
obsessão comum, de uma mesma ideia zoológica, grotesca, grave,
de um ridículo fenomenal: acreditavam que eram macacos,
 e assim viviam.
Minha mãe convidou-me uma noite para ir con ela saber noticias
dos parentes loucos. Não encontramos ninguém quando lá chegamos,
só a mãe de Urquizo que se distraia a mexer num monte de papeis sujos,
sob a lâmpada que pendia no centro da sala. Dado o isolamento e atraso
daquele povoado, que não tinha instituições de caridade nem polícia, 
os doentes saiam quando queriam para as ruas. Perambulavam, 
entravam nas casas, despertando sempre o riso e o pesar.
Ao nos ver, a mãe dos alienados ganiu agudamente, franziu as sobrancellas
com força e selvageria; continuou a vibrá-las para cima e para baixo, 
lançou com um gesto mecânico a folha de papel que manuseava e acocorou-se
sobre a cadeira com a rapidez infantil de um estudante que fica sério
diante do professor, escondeu os pés, dobrou os joelhos até a altura do tronco e,
nessa atitude, semelhante a uma múnia, esperou que entrássemos na casa
cravando os olhos - irrequietos, inexpressivos e selváticos - nas nossas
figuras, e naquela noite eles suplantaram assombrosamente os olhos
de um macaco, a boca revelava a ira. Minha mãe encostou-se a mim,
assustada e trêmula, e eu fui dominado por uma arrepiante sensação de espanto.
Mas não, sob a claridade da lâmpada, distinguimos naquela face perdida,
sob o cabelo que caia em crinas asquerosas até os olhos, começando logo
a franzir-se e mover-se sobre o miserável e esfarrapado tronco, virando-se
para os lados, como se estivesse sendo ajudada por forças invisíveis
ou por ruidos misteriosos produzidos nas barras metálicas de um parque.
A louca, como se prescindise de nós, começou a esfregar e a catar a barriga, as costas, os braços, triturando os parasitas com seus dentes amarelos.
Gania, às vezes, longamente e espreitava a sua volta, olhava a porta, 
como se fizesse uma advertência. Minha mãe, transcorridos alguns minutos
de espectativa e medo, fez-me um sinal para retroceder e abandonarmos a casa.
Este fato ocorreu há pelo menos vinte e três anos, até que, após ter vivido distante dos familiares por causa dos meus estudos em Lima, regressei um dia a Cayna,
a povoação que, além de solitária e distante, era como uma ilha para além
das montanhas ermas. O povoado arcaico de agricultores humildes, separados dos grandes centros civilizados do país por imensas e quase inacessíveis cordilheiras, vivia longos períodos de esquecimento e de absoluta falta de comunicação
com as outras cidades do Peru.
Devo chamar a atenção para a circunstância muito inquietante de não ter recebido
notícias da minha familia nos seis últimos anos em que estive ausente.
Minha casa situava-se quase a entrada do povoado.
Pairava um poente de maio - desses suaves e reflexivos poentes do leste peruano - sobre a cidade que, não sei por que razão, tinha naquela hora, na sua solidão e abandono exteriores, o ar de desgraça, o obstinado ar de abandono.
A falta de zelo e destruição transpareciam em toda parte. Não havia nem uma pessoa, a ao atravessar algumas esquinas os meus nervos enrijeceram-se, golpeados
por uma brusca impressão de ruína. Sem dar-me conta, estive à beira de chorar.