terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Estudo sobre escultura de Antoine Bourdelle - nanquim

Esperança respondeu-lhe com duas gaifonas, e deixou-se estar solteira. Há de vir o noivo, pensou ela. Olhando-se ao espelho, viu que muito pouco mudara. Os vinte e cinco almanaques quase lhe não apagaram a frescura dos quinde. Era a mesma linda e jovem Esperança. O velho Tempo, cada vez mais afogueado em paixão, ia deixando cair os almanaques, ano por ano, até que ela chegou aos trinta e daí aos trinta e cinco.

Estudo sobre esculturas de Rogélio Yrurtia - nanquim

Eram já vinte almanaques; toda a gente começava a odiá-los, menos Esperança, que era a mesma menina das quinze primaveras. Trinta almanaques, quarenta, cinquenta, sessenta, cem almanaques; velhices rápidas, mortes sobre mortes, recordações amargas e duras. A própria Esperança, indo ao espelho, descobriu um fio de cabelo branco e uma ruga. / - Uma ruga! uma só!

Estudo sobre escultura de Franz Xaver Messerschmidt - nanquim

Outras vieram, à medida dos almanaques. Afinal a cabeça de Esperança ficou sendo um pico de neve, a cara um mapa de linhas. Só o coração era verde como acontecia ao Tempo; verdes ambos, eternamente verdes. Os almanaques iam sempre caindo. Um dia, o Tempo desceu a ver a bela Esperança; achou-a anciã, mas forte, com um perpétuo riso nos lábios. - Ainda assim te amo, e te peço... disse ele.

nanquim

Esperança abanou a cabeça; mas, logo depois estendeu-lhe a mão. -Va lá, disse ela; ambos velhos, não será longo o consórcio. - Pode ser indefinido. - Como assim? O velho Tempo pegou da noiva e foi com ela para um espaço azul e sem termos, onde a alma de um deu à alma do outro o beijo da eternidade. Toda a criação estremeceu deliciosamente. A verdura dos corações ficou ainda mais verde.

Estudos sobre a escultura de Rogélio Yrurtia / nanquim

Esperança, daí em diante, colaborou nos almanaques. Cada ano, em cada almanaque, atava Esperança uma fita verde. Então a tristeza dos almanaques era assim alegrada por ela; e nunca o Tempo dobrou uma semana que a esposa não pusesse um mistêrio na semana seguinte. Deste modo todas elas foram passando, vazias ou cheias, mas sempre acenando com alguma coisa que enchia a alma dos homens de paciência e de vida. Assim as semanas, assim os meses, assim os anos.

nanquim

E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime. Esperança os brocha; é toda a oficina da vida. / M. DE A.