domingo, 16 de janeiro de 2011

O CORTIÇO de Aluísio Azevedo
Ilustrações: Carlos Clémen Edição: "Ateliê" - SP
ALUÍSIO AZEVEDO / São Luís do Maranhão 1857 - Buenos Aires - Argentina 1913 / Concluindo os preparatórios em São Luís, muda-se para o Rio de Janeiro em 1876, onde prossegue estudos na Academia Imperial de Belas Artes, obtendo o título de subsistência imediata, oficio de colaborador caricaturista de jornais. Em 1981, ano de reivindicações abolicionistas, publica o romance "O Mulato", que deixa a sociedade escandalizada pelo modo cru com que desnuda a questão racial, se revelando um abolicionista convicto. / "O Cortiço", publicado em 1890, representa um marco do naturalismo no Brasil, onde os principais protagonistas são os moradores de um cortiço no Rio de Janeiro, precursor das favelas, onde moram os excluidos, todos aqueles que não se misturavam com a burguesia, todos eles possuindo os problemas e vicios decorrentes do meio em que vivem. O autor descreve a sociedade carioca da época, formada pelos portugueses, os burgueses, os negros e os mulatos, pessoas querendo mais e mais dinheiro e poder. pensando em si só, ao mesmo tempo em que presenciam a miséria dos outros. / Aluisio descreve o coletivo, explicitando a animalização do ser humano. Evidenciando a desigualdade social vivenciada pelo Brasil, juntamente com a ambição do capitalismo selvagem. Em 1895 ocupa cargo diplomático, servindo na Europa, e posteriormente no Paraguay e na Argentina. Em 1910, feito cônsul de primeira clase, instala-se em Buenos Aires, onde vem a falecer três anos depois.
CARLOS CLÉMEN - Buenos Aires - Argentina 1942. Pintor e ilustrador. Residente no Brasil desde 1971, Clémen destacou-se nos anos 70 e 80 como ilustrador da imprensa alternativa e do caderno "Folhetim" da Folha de São Paulo. Na atualidade trabalha como ilustrador de temas literários e programador visual.
Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu e a noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal ao seu dono vinte mil-reis por mês, e, a pessar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia porém o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiú morto na rua, ao lado da carroça, estrompando como uma besta.
Posto que lá na Rua do Hospicio os seus negocios não corresem mal, custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna do vendeiro "aquele tipo! um miserável, e que vivia de cama e mesa com uma negra!"
De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, á semelhança dos donos cumprimentávam-se ruidosamente, espanejandose à luz nova do dia. / Daí a pouco em volta das bicas, era um zum zum crescente, uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns após outros lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio d'água que escorria da altura de uns cinco palmes.
Meia hora depois, cuando João Romão se viu menos ocupado, foi ter com o sujeito que o procurava e assentou-se...
O que será este pedaço d'homem? indagou a Machona da sua vizinha de tina, a Augusta carne mole. / - A modos, respondeu esta, que vem para trabalhar na pedreira. Ele ontem andou por lá um ror de tempo com o João Romão. / - Aquela mulher que entrou junto será casada com ele? / - É de crer. / - Ela me parece gente das ilhas. / -Eles o que têm é muito bons trastes de seu!
Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor. As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros de roupa engomada saiam das...
Era oficial torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar num dia. Às vezes porém os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses; afogava-se numa boa pandega como a Rita baiana. A Rita ou outra. "O que não faltava por aí eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo". Nascera no Rio de Janeiro, na corte, militara dos doze aos vinte anos em diversas maltas...
No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e em vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que ele estava incomodado e ficava de descanso aquele dia. - Que tens tu, Jerônimo?.. / - Morrinhento filha... vai anda! / - Mas sentes-te mal?.. / - O mulher! vai fazer o que te disse e ao depois, então dalas à lingua! / - Valha-me a virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!
E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português; e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestras nas horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para jantar. A revolução afinal foi completa: aguardente de cana...
Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, viam-se nas janelas do sobrado, abertas de par em par, de vez em quando, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau. Olhos fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava, como
A bruxa por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juizo e tentou incendiar o cortiço.
Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa. No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de alvoroço pelo número 15. E aí sem uma palavra, ergueu a saia do vestido e expôs a D. Isabel as suas fraldas ensangüentadas - Veio? perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d'alma. A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida. As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.
À proporção que alguns locatarios abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiram disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela fevre amarela, e três outros italianos estiveram em risco de vida. O número de hóspedes crescia, os casulos subdividiam-se em cubículos do tamanho de sepulturas, e as mulheres iam despejando com uma regularidade de lado procriador.
Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele. Apresentava-se distraída, as vezes impertinente, puxando questão por da lá aquela palha.
Dois candeeiros de kerosene fumegavam, encarvoando o teto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer no caminho vencida por aquela densa atsmosfera cor de opala
A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido. Ouvira, assentada impaciente à porta de sua casa, darem oito horas, oiti e meia, nove, nove e meia. Que tería acontecido, mãe santíssima?..
Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cesasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar.