quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

OS ESCRITORES / AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO

Trimano 1998 - nanquim - retrato realizado especialmente para o livro "Trincheiras de Sonho" de Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo

1881 - Afonso Henriques de Lima Barreto
nasce no Rio de Janeiro a 13 de maio.
1887 - Fica órfão de mãe. Freqüenta a escola
pública.
1897 - Ingressa na Escola Politécnica do
Rio de Janeiro.
1903 - Seu pai enlouquece. Abandona a Escola
Politécnica e vai trabalhar na Secretaria de Guerra
para poder sustentar a familia. Freqüenta os meios
boêmios e intelectuais do Rio de Janeiro.
1905 - Trabalha como jornalista no Correio
da Manhã.
1909 - Seu romance "Recordações do Escrivão
Isaías Caminha" é lançado em Lisboa.
1911 - "Triste Fim de Policarpo Quaresma é publicado em folhetíns
pelo Jornal do Comércio.
1914 - É recolhido a um hospício.
1916 - Doente, interrompe temporariamente sua
atividade literária e profissional. Atua na Imprensa
anarquista, onde publica "Manifesto Maximalista".
1918 - É aposentado do seu cargo na Secretaria de Guerra,
por invalidez.
1919 - Novamente é recolhido ao hospício, onde só
sairá no ano seguinte.
1922 - Vítima de colapso cardíaco, falece no Rio de Janeiro
a primeiro de novembro.
Voltei para o pátio. Que cousa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compasivo, de camponés transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me de você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um exelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoievski, na "Casa dos Mortos". Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoievski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria. Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela. / Lima Barreto / "Cemitério dos Vivos" - 1921

Foto do Hospicio - anónima

RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA / LIMA BARRETO
Ilustrações: Luis Trimano
Projeto de edição do romance "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" de Afonso de Lima Barreto / Financiado pelo EDITAL UNIVERSAL / CNPQ / coordenação: Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo
Capítulo I

detalhe

Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas,
punha-me a medir as dificuldades, considerar que o Rio era uma
cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu
não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudessem
valer... / Que faria lá, só, a contar com as minhas próprias forças?
Nada... Havia de ser como uma palha no rodamoinho da vida - levado
daqui, tocado para ali, afinal engolido no sorvedouro... ladrão...
bébado... tísico e quem sabe mais? Hesitava. De manhã, a minha
resolução era quase inabalável, mas, já à tarde eu me acobardava
diante dos perigos que antevia. /
Um dia, porém, li no Diário de... que o Felício, meu antigo condiscípulo,
se formara em Farmácia, tendo recebido por isso uma estrondosa,
dizia o Diário, manifestação dos seus colegas. /
Ora o Felício! pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha
vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também - eu que lhe
ensinara, na aula de portugués, de uma vez para sempre, diferença
entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por qué!? / Li essa noticia na sexta feira. Durante o sábado tudo enfileirei no meu espírito, as vantagens e as
desvantagens de uma partida. Hoje, já me recordo bem das fases dessa
batalha; porém uma circunstância me ocorre das que me demoveram a partir.
Na tarde de sábado, sai pela estrada fora. Fazia mau tempo. Uma chuva
intermitente caía desde dois dias. / Saí sem destinho, a esmo, melancolicamente aproveitando a estiada. Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas galopavam e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha
aproximava-se e, pouco a pouco, via-a subdividir-se, multiplicar-se; por fim,
um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado
em dois ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um V.
Era a inicial de "Vai". Tomei isso como sinal animador, como bom augúrio.
Capítulo V
A sala da delegacia voltou novamente ao seu silêncio primitivo.
Um soldado veio apresentar-se, trocando rápidas palavras com o inspetor.
Um relógio próximo bateu quatro horas. Dos compartimentos do fundo,
chegou um personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas, furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia
uma medalha cravejada de brilhantes. Dirigiu-se ao inspetor: - Raposo,
vou sair: há alguma cousa? / - Nada, Capitão Viveiros. / - E o caso
Jenikalé? Já apareceu o tal "mulatinho"? / Não tenho pejo em confessar
hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos.
Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração,
de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava
cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho
de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação
de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada.
Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte tal vez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus olhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a que
me compare, não sei mesmo se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida;
mas choro agora, choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas não me torna a fazer chorar. Entretanto, isso tudo é uma questão
de semántica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação
injuriosa. Essa reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque
sentia na baixeza do tratamento todo o desconhecimento das minhas
qualidades, o julgamento anterior da minha personalidade que não queriam
ouvir, sentir e examinar. O que mais me feriu, foi que ele partisse de um
funcionário, de um representante do governo, da administração que devia
ter tão perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao
Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.
Capítulo VIII
O doutor Ricardo Loberant entrou fumando com força seguido de
Pacheco Rabelo (Aires d'Ávila), redator chefe do jornal, a segunda
cabeça da casa. Era um homem gordo que se movia pela sala com a dificuldade de um boi que arrasta a relha enterrada da charrua. Havia
na sua marcha um grande esforço de tração e um monóculo petulante
na face imóvel não lhe diminuía o peso da figura. Os dois penetraram na redação pondo na sala uma inexplicável atmosfera de terror. Pelos
longos anos em que estive na redação do O Globo, tive ocasião de
verificar que o respeito, que a submissão dos subalternos ao diretor
de um jornal só deve ter equivalente na administração turca. È de
santo o que ele faz, é de sábio o que ele diz. Ninguém nais sábio e
mais poderoso do que ele na Terra. Todos têm por ele um santo terror
e medo de cair da sua graça, e isto dá-se desde o contínuo até o
redator competente em literatura e cousas internacionais. / Passando
por entre as mesas, tal era a concentração das faces e o ar aterrado daqueles
homens tão arrogantes lá fora, tão sublimes na rua, que eu pensei que se fossem atirar ao chão para serem pisados por aquele novo deus, dando-me ali um espetáculo da Índia mística.