segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

HOMENAGEM

TRIMANO - "Combatente" - nanquim - ilustração para o poema "Consternados, raivosos" de Mario Benedetti

A VIDA E AS VIDAS DE APOLÔNIO



Álvaro Caldas


Um balanço da trajetória política e existencial de Apôlonio de Carvalho, que abrange mais de 60 anos da sangrenta e conturbada história do século passado, mostra que este velho e apaixonado militante comunista, que morreu com 93 anos, percorreu o mundo, lutou em várias frentes e experimentou diversas vidas, todas unidas pelo fio da luta pelo socialismo. Cidades como Rio, Madri, Paris, Praga, Moscou e Argélia, foram palco das andanças deste obstinado e otimista cavaleiro da Ordem dos Comunistas, armado com as teorias de Marx e as táticas de Lênin, líder da revolução soviética que marcou a ferro e fogo sua geração.


Ainda que tenha perdido algumas batalhas e não alcançado o poder, Apolônio emerge deste acerto de contas com a História, em seu centenário de nascimento, com a aura e a postura de um vencedor. A ele poderiam ser entregues as batatas, como no conto de Machado de Assis. Apolônio era antes de tudo um sonhador, sempre pronto, até os últimos dias, para reiniciar de novo, com uma invejável disposição de lutar por estas batatas que a história aproximou e afastou de suas mãos.


Seu perfil mostra que ele foi mais do que um disciplinado quadro do Partido. Tinha alma de poeta, a dimensão mítica de um revolucionário romântico, uma rara e extinta espécie que floresceu entre as guerras e morreu nos anos 70 do século passado. Viveu e se formou entre os comunistas, passou trinta anos contido dentro do PCB, do levante militar contra Vargas, em 35, que lhe valeu a primeira prisão, então jovem tenente, à opção pela luta armada, em 1967.


Junto com Mário Alves e Jacob Gorender, divergiu e rompeu com o Partido, num momento dramático de enfrentamento contra a ditadura. Esperança talvez seja a palavra para entender sua visão de mundo. Está em Hannah Arendt que "a condição humana tem como características a pluralidade, a diversidade e a esperança, que provém da permanente capacidade que têm os homens de começar algo novo.” Foi a compreensão deste fenômeno que o salvou da morte intelectual - da física ele se livrou por conta própria, graças a sua coragem e a ajuda do destino.


É claro que foi também a Renée, uma jovem de 17 anos que ele conheceu num hospital que cuidava de combatentes feridos em Marselha. Uma noite lhe coube a missão de levar em casa a bela e improvisada enfermeira. O jovem e galante Apolônio entrou num café, pediu duas taças de vinho e declarou sua paixão à tímida Renée, que sorriu desconfiada e foi sua mulher a vida inteira


Em seu livro “Um belo domingo”, (Nova Fronteira, 1982),em que intercala a narrração de sua passagem pelo campo de Buchenwald comuma devastadora crítica dos seus anos de militância partidária, o espanhol Jorge Semprun, que foi “Federico Sanchez”, destaca o relevante papel de um grupo de veteranos comunistas que combateram na Espanha e na resistência francesa. “Foi no campo da guerra, civil ou não, que os comunistas se mostraram mais eficientes. Chegaram mesmo a ser brilhantes.”O gauche Apolônio, que foi “Lima”, “tenente-coronel Edmond” e “Jean Pierre Casal” num de seus passaportes, pertence a esta geração de veteranos comunistas.


No verão de 1970, aos 58 anos, então dirigente do PCBR, quando entrou na ofi-cina de torturas do DOI-Codi, na rua Barão de Mesquita, tinha clara consciência de que poderia morrer. Suportou três dias de tortura, nu, de capuz, algemado, deitado e amarrado, submetido a choques elétricos e pancadas. Houve um momento em que respirou e pediu para chamar o comandante. Pensaram que ele fosse falar. Entrou na sala o coronel Nei Antunes, comandante da PE. E Apolônio fez uma digressão sobre a Convenção de Genebra, o respeito devido aos prisioneiros de guerra,sustentando que se encontrava nesta condição. O oficial se irritou, saiu e a sessão continuou,com a aplicação de Pentotal, o chamado soro da verdade, droga introjetada por via endovenosa.


Depois de longos momentos de flutuação de consciência e perda da memória, salvou-se graças a uma imensa vontade de viver,conforme deixou gravado em depoi-mento .Preso no mesmo janeiro de 70, Mário Alves, secretário-geral do PCBR, foi empalado e assasssinado na mesma salada oficina de torturas do DOI Codi. A localização de seu corpo constitui um dos desafios para testar o verdadeiro alcance da Comissão da Verdade.


Banido para a Argélia em junho de 70, Apolônio retornou com a anistia e participou da criação do PT. No centenário do personagem, sua vida está à disposição para novos livros e para roteiristas de cinema. O velho comunista Apolônio possuía o dom da sedução, uma face humana e suave, e foi uma das figuras mais marcantes da esquerda brasileira.


Álvaro Caldas é escritor, professor da PUC Rio e autor de Tirando o Capuz e Balé da Utopia.