segunda-feira, 20 de março de 2017

O sol já está alto, passa do meio dia, quando finalmente
descemos a escadaria que liga o prédio principal ao pátio
de manobras do 1º Batalhão da Polícia do Exército.
Seu território  faz fronteira com a área posta sob domínio
da Estação Doicodi. Logo posso identificar suas principais
referências arquitetónicas: os dois prédios baixos, horizontais, pintados com tonalidades verdes, 
situados ao fundo. O pátio é amplo, ao ar livre. 
Fica no centro de um conjunto de antigas edificações
de dois andares, onde se localizam dependências administrativas.
As salas do andar superior posuem sacadas com grades
de ferro, formando um conjunto que me faz lembrar
a área interna de um convento.
Um dia de rotina nas atividades do Batalhão. À nossa frente, um pelotão de soldados marcha em ordem unida. A uma voz
de comando, torcem o pescoço e olham à esquerda. Depois
o mesmo movimento para a direita. Em seguida a voz determina alto! Os praças interrompem a marcha e batem
com força os calcanhares de seus coturnos. Mais adiante,
próximo da entrada de uma garagem de motos, um grupo
especializado de militares faz um treinamento com cães,
que são estimulados a saltar obstáculos.
A Polícia do Exército usa cães e motos em suas ações
externas.
Um dia de calmaria na rotina do Batalhão Marechal
Zenóbio da Costa, comandante da Força Expedicionária Brasileira na 2º Guerra. Um dia de assombro na vida
deste narrador. Olho em torno e posso dizer: sim, já estive
aqui nesta praça de armas. As pessoas é que são outras.
A história avançou quase meio século. Tinha 29 anos
quando caminhei por esse piso de cimento corrido a primeira
vez. Era repórter do "Jornal do Brasil" e integrante 
de uma organização de luta armada. Misturava as duas
atividades com paixão. Combinava perigosamente a vida legal com a militância clandestina. A ditadura devastou
a terra onde germinavam aqueles sonhos.
Fruto de uma conjunção espacial misteriosa, foi aqui,
neste círculo central onde se encontram meus pés,
que vi o "Gigante da Colina" pela última vez. O "Gigante"
foi o primeiro carro comprado com meu salário de repórter.
Um fusquinha vinho, que trazia no vidro traseiro o adesivo
do Clube de Regatas Vasco da Gama. Durante meses
foi um leal servidor da organização. Transportou militantes
clandestinos, levou panfletos para porta de fábricas,
participou de pichações e pequenas ações de roubo 
de placas. Serviu de abrigo para apressadas reuniões
e terminou seus dias de combatente num tiroteio, na praça
Aquidauana, depois de uma perseguição pelas ruas 
de Bras de Pina. Batido, recebeu meia dúzia de balaços.
Naquele dia, o tenente Dulene Aleixo Garcez dos Reis
surgiu diante do portão de grades do "Maracanã",
a grande cela coletiva que reunia os estropiados 
vindos da tortura, e chamou pelo meu nome. 
Hora de almoço, estava aguardando a chegada do bandejão,
final de abril de 1970, dois meses após minha prisão. Garcez
era um dos tenentinhos mais temidos entre os que davam
expediente integral no Doicodi. Um temor derivado de sua
insignificância e dos golpes que desferia. Pediu-me para
acompanhá-lo. Considerei aquilo descabido. Estava na hora
do rango e meu período de porradas já havia terminado.
Para, mostrar que nada do que acontecia ali era descabido,
fez logo uma provocação: quer dizer então que o jornalista,
além de subversivo é trambiqueiro?
Ele me conduz ao pátio, onde uma pequena cerimonha
estava montada. No meio de um grupo estranho de homens
de terno e gravata, que cumpriam um mandado de busca
e apeensão, com cláusula de arrombamento e requisição
de força, estava o "Gigante", inteiramente desfigurado.
Deu perda total. Os oficiais de justiça saíram a sua procura
e foram encontrá-lo batido, no 1º Batalhão da Polícia do Exército. Veio fazer companhia ao seu antigo proprietário,
o jornalista subversivo e trambiqueiro, que deixara de pagar
as três últimas prestações de sua compra financiada.
Permaneci imóvel enquanto revia a cena se desenrolar
diante de meus olhos. Guardo até hoje cópia da folha 
de papel oficial, carimbada e amarelecida, com a assinatura
do tenente Dulene Aleixo Garcez dos Reis, O "Gigante",
que portava uma placa fria e tinha os pneus murchos,
nunca mais vi. Foi entregue aos oficiais da Justiça
que o encontraram nas dependências do Doicodi.
E eu, levado de volta ao "Maracanã".  

Nenhum comentário: