segunda-feira, 20 de março de 2017

O que o leitor lerá a seguir é o esboço de um relato
deixado na portaria de meu prédio por um homem
que se apresentou como advogado. Estava apressado,
vestia terno e gravata, perguntou ao porteiro se eu ainda
morava no prédio. Depois de uma primeira leitura,
cogitei que poderia enviá-lo para apreciação do imortal
Jorge Luis Borges, autor de uma afamada
"História Universal da Infâmia".
Seu personagem, Flecha Ligeira, a Serpente Pérfida
de Olhar Cintilante, situa-se na tradição dos tipos infames
recriados por Borges a partir de suas leituras de autores
clássicos. Borges utilizou a magia, o sonho e a imaginação
nos seus exercicios de prosa narrativa para compor
sua galeria universal de fascínoras. "O Estranho Redentor 
Lazarus Morell", "O Incrível Impostor Tom Castro", 
e o "Provedor de Iniquidades Monk Eastman", entre os sete
relatos de ficção que integram seu primeiro livro de contos,
que foi publicado em 1935. Nele, propõe outro modo
de representar a realidade, que a questiona e ultrapassa.
Escolheu para a obra um título retumbante, e fez uso
de uma linguagem barroca.
O deplorável Flecha Ligeira é um tipo que se situa 
na linhagem do "Provedor de Iniquidades Monk Eastman".
O envelope lacrado que me foi entregue pelo porteiro
continha apenas uma página datilografada, espaço um
entre as linhas, com poucos parágrafos. Seu autor andou pelos cárceres da ditadura durante mais de dois anos,
de 1970 a 1972. Se for o mesmo que eu estou pensando,
devo ter cruzado com ele em um quartel do Exército,
lá pelas bandas da Vila Militar, que serviu de carceragem
para presos políticos.
Em seu relato, encontrei imprecisões e lacunas. Não posso
atestar que tudo o que ele narra seja verdade. Poderia ser
que, com sua arte, Borges a transformasse num texto
magnífico. Foi com material semelhante, fantástico
e aparentemente inverossímel, que ele criou suas lendas.
Também pesou em minha decisão de transcrevê-lo o fato,
inquestionável, de que seu autor foi hóspede desta Grande
Estação Central, o Doicodi da Barão de Mesquita.

O Olhar Fixo e cintilante de uma serpente pérfida.

No final de 1970 cheguei preso pela primeira vez 
ao tenebroso Doicodi da Barão de Mesquita. Meu irmão
mais velho, José Dourado, codinomes Andrade e Baianinho,
estava em um quartel do Exército na Vila Militar, juntamente
com outros presos políticos entre os quais Maria Auxiliadora
Barcellos Lara, que foi libertada no sequestro do embaixador
suiço e se suicidou no exílio, em Berlim. 
Me encontrava ainda na semilegalidade e forçava a barra
visitando meu irmão para fazer a ligação entre a prisão
e a organização, quando surgiu o plano para asaltar 
o quartel, libertar os presos e levar uma boa quantidade
de armas e munição. A ação contava com a colaboração
interna de dois soldados e um sargento. Malogrado o plano,
fui preso.
Certo dia, no mês de dezembro de 1970, um camburão 
da polícia estacionou no pátio do Batalhão. Eu e um dos soldados envolvidos no plano, ainda usando a farda
do Exército, fomos conduzidos até o compartimento traseiro
da viatura, onde se encontrava preso o advogado gaúcho
Carlos Franklin de Araújo, o Max. Me identifiquei e relatei o ocorrido. Ele me disse que também era membro 
da organização, e que a Estela, Dilma Rousseff,
já se encontrava no Doicodi. Fomos levados no camburão
para um quartel da Aeronáutica, e pouco tempo depois
trazidos de volta para o Doicodi.
Fiquei na cela seis, ao lado da que se encontrava a Estela.
Um "catarina", (soldado do Exército), que fez amizade comigo porque queria ser paraquedista e foi obrigado
a servir na PE, me disse que na cela vizinha estava
uma prisioneira trazida de São Paulo, com seu companheiro.
Todo plantão ele me trazia uma ou duas frutas, 
alguns biscoitos e cigarros. Chegou a dar um telefonema fora do quartel para o escritório do advogado Sobral Pinto,
na rua Debret, centro do Rio. Libertado condicionalmente
pela Segunda Auditoria da Aeronáutica, voltei à luta clandestina. A organização era então comandada pelo
James Allen Luz, o Ciro, único remanescente do Comando
Nacional que não tinha sido preso ou morto. 
Integrava a chamada Frente Armada de Resistência 
à Ditadura.       

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