terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

detalhe

Chegavam em carros, coupés, e espalhavam-se pelo jardim,
disputando a sombra das árvores em grupos de homens e
senhoras. o pessoal masculino era soberbo: a nata - Senado,
Cámara, altos tribunais, grandes patentes do Exército e da
Marinha - cartolas reluzentes e negras sobrecasacas a enquadrar
os dourados dos uniformes. Tudo vergado ao sol indiferente e forte.
As senhoras sentiam-se mal, envolvidas naquelas fartas ondas de luz e calor.
Os bosquetes de arbustos tinham uma despreocupação divina e as grandes
árvores nodosas davam uma escassa e compasiva sombra. As lanchas
de aluguel, com bandeiras em que se lia o título do jornal, não tinham
chegado. Eu esperava, afastado do grosso da claque, tímido diante de
tanta grandeza inabalável. Chegou um ministro. Um movimento igual fez todos voltarem-se para o lado em que ele vinha. A atitude foi instantânea
em cada homem e em cada mulher; era como se ao centro de uma porção
de limalha de ferro espalhada, se houvesse chegado um pequeno ímã. /
O doutor Ricardo cumprimentou a alta autoridade e, a seu chamado,
foi-lhe falar. Além do ministro, intermeteu-se uma nova personagem;
um preto velho, quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.
Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de pescaria;
com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a corda,
enquanto balbuciava qualquer cousa. Ia de grupo em grupo, tangendo
o seu monocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma extravagente beleza, certamente só percebida por ele e feita pela sua
alma para a sua alma... Tocava e esperava esmolas. Em todas as
fisionomias, havia decerto piedade, comiseração, e mais alguma cousa
que não me foi dado perceber. Era constrangimento, era não sei o que...
O preto tinha os pés espalmados e, com a cegueira e a velhice, andava
de leve, sem quase tocar no chão, escorregava, deslizava - era como
uma sombra...

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