terça-feira, 29 de agosto de 2017

CARTA A GEORGES-DANIEL DE MONFREID
Tahiti, fevereiro de 1897

Mal chegou o correio, sem nada ter recebido de Chaudet*,
com a minha saúde quase de repente restabelecida,
isto é, já sem ter oportunidade de morrer naturalmente,
quis matar-me. Fui esconder-me na montanha, aonde
meu cadáver seria devorado pelas formigas. Não tinha
revólver mas possuía arsénico, por mim entesourado
durante o meu eczema; a dose teria sido demasiada,
ou foram os vómitos que anularam a acção do veneno
e o rejeitaram? Não sei. Depois de uma noite de sofrimento
atroz voltei, enfim, a casa. Durante todo o mês fui assaltado
por forte pressão nas têmporas, tonturas, náuseas
ao menor alimento.
A resolução estava tomada para o mês de dezembro.
Mas antes de morrer quis pintar uma grande tela
que trazia na cabeça e, pelo mês fora, trabalhei dia e noite
numa febre inaudita. Bolas, que não é uma tela feita
como um Puvis de Chavannes, estudo ao natural, depois
um cartão preparatório, etc. Tudo isso fiz a despachar,
a ponta de pincel, numa tela de serapilheira cheia de nós
e rugosidades. O aspecto resultou assim, terrivelmente rude.
Dir-se-á que é desleixado, não acabado. É verdade que não
nos julgamos bem a nós mesmos mas creio, todavia,
que esta tela não só ultrapassa em valor 
todas as precedentes como não farei outra melhor
nem parecida. Antes de morrer, nela empreguei toda 
a minha energia, uma tal paixão dolorosa e em circunstân-
cias tão terríveis, uma visão de tal forma nítida
e sem correções, que o apressado se anula e a vida surge.
Não cheira a modelo, a oficina, a pretensas regras
que sempre violei, algumas vezes com medo.
É uma tela de 4,50 m por 1,70 m de alto...
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...Se disséssemos aos alunos das Belas Artes, preparados
para o concurso de Roma: o quadro que têm de fazer
chamar-se-á De onde viemos? quem somos? para onde
vamos?, o que fariam eles? Terminei uma obra filosófica
sobre este tema comparado ao do Evangelho.
Creio que está bem. 
Se tiver força para a recopiar, mandá-la-ei.

Paul Gauguin - Noa Noa

* Trata-se de Georges-Alfred Chaudet, marchand que, em Paris,
   procurava colocar no mercado os quadros de Gauguin.

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