sábado, 15 de julho de 2017

A tarde descambou, e com o temor gerado
pelo Silêncio Branco, os mudos viajantes se curvavam em sua faina. A natureza posui muitos ardis para convencer
o homem da sua qualidade infinita: o fluxo incessante 
das marés, a fúria da tormenta, o abalo do terremoto, 
o longo rolar da artilharia celeste. Porém o mais tremendo,
o mais assombroso de todos, é a fase pasiva do Silêncio
Branco. Todo movimento cessa, o firmamento clareia,
os céus são de cobre; o menor susurro se diría 
um sacrilégio e o homem se intimida, apavorado ao som
da própria voz. Única mancha de vida jornadeando 
pelos desertos fantasmais de um mundo morto, êle treme
em face da própria audácia, percebe que a sua é a vida
de um verme, nada mais. Estranhas idéias não evocadas
lhe afloram à mente, e o mistério das coisas luta 
por expressão. É o medo da morte, do universo, subjuga-o -
a esperança na Resurreição e a Vida, o anseio 
de Imortalidade, o vão esfôrço da essência prisioneira -
e é então, ou nunca, que o homem caminha solitário com Deus.
O dia declinou. O rio fêz uma grande curva, e Mason
guiou os cães para o atalho da estreita língua de terra.
Os cães porém recuaram em face da alta ribanceira.
Uma e mais vêzes, enquanto Ruth e Kid Malemute
empurrassem o trenó, os cães escorregaram. Fizeram então
um esforço conjunto. As pobres criaturas, fracas de fome,
empregaram nisso suas últimas fôrças. Subiram - subiram -
e o trenó foi pôsto no alto da ribanceira; mas o líder
sacudiu para a direita a fila de cachorros que vinham atrás,
e que foram abalroar os sapatões de Mason. O resultado,
um desastre! Mason perdeu o pé; um dos cães caiu sob
a trela, e o trenó tombou para trás, arrastando tudo novamente para o fundo.
Lept! e o chicote estalou tàrtaramente, principalmente
em cima do cão que tombara.
- Não Mason! - suplicou Kid Malemute - O pobre-diabo
está morrendo. Espere; atrelemos minha parelha ao seu trenó.
Mason esperou deliberadamente até à última palavra,
mas logo em seguida o comprido chicote tornou a estalar
enrolando-se todo no corpo do pobre animalzinho culpado.
Carmen - (pois era Carmen) - encolheu-se na neve, ganiu
dolorosamente, depois rolou para um lado.
Foi um momento trágico, um penoso incidente da caminhada
- um cão morrendo, dois camaradas enfurecidos... pasava
o olhar solícito de um homem para outro; mas Kid Malemute
se conteve, embora um mundo de censura lhe nadasse 
nos olhos, e, debruçando-se sôbre o cão, cortou-lhe a trela.
Não se disse uma única palavra. 
As parelhas foram dobradas, a dificuldade vencida; os trenós
recomeçaram a andar, com o próprio cão moribundo
arrastando-se na retaguarda. Ninguém mata um animal 
que ainda é capaz de caminhar e uma última oportunidade lhe é concedida: rastejar até o acampamento mais próximo,
se puder, na esperança de algum alce morto.
Já se penitenciando pelo gesto irado, mas por demais
teimoso para pedir desculpas, Mason se afanava à testa
da cavalgada, sem sonhar com o perigo que pairava no ar.
O mato era cerrado no fundo protegido, e por ali iam êles,
varando caminho. A cinqüenta pés ou mais além da trilha
se levantava um altíssimo pinheiro. Fazia algumas gerações que estava ali, e durante gerações o destino tinha isso mesmo em vista - e também, quem sabe? já tivesse decretado o que estava para acontecer.
Mason parara para amarrar a correia solta da mocassina.
Os trenós fizeram uma pausa, e os cães deitaram-se 
na neve sem um gemido sequer.
A quietude era fantasmagórica; nem o mais leve susurro agitava a floresta encrostada de neve; o frio e o silêncio
do espaço exterior enregelaram o coração da natureza,
golpeando-lhe os trémulos lábios. Um suspiro pulsou no ar -
êles porém pareceram realmente não ouvi-lo. 
Tal vez sentissem-no como o presságio de um movimento
no vácuo imóvel. Então a grande árvore, carregada de anos e de neve, desempenhou na tragédia da vida, 
o seu derradeiro papel. 
Mason ouviu o estalido de advertência, ainda tentou saltar,
mas, quase ereto, recebeu o golpe em pleno ombro.
O súbito perigo, a morte rápida - quantas vêzes Kid Malemute os encarara! 
As agulhas do pinheiro ainda tremiam quando êle lançou
a ordem e saltou para a ação. A môça índia nem ao menos desmaiou ou levantou a voz num ocioso lamento, 
como fariam muitas de suas irmãs brancas. 
Ouvindo-o, atirou todo o pêso de seu corpo na extremidade 
de uma alvanca de pau improvisada, atenuando a pressão
e escutando os gemidos do marido, enquanto Kid Malemute
atacava a árvore com a sua machadinha. O aço vibrava
alegremente ao morder o tronco enregelado, e cada batida
vinha acompanhada por uma respiração difícil e audível, o "ha"! "ha"! do homem do mato.
Finalmente Kid estendeu na neve a coisa comovente
que antes fôra um homem. Mais triste porém do que a dor
de seu camarada era a muda angústia no rosto da mulher,
o seu olhar de interrogação entre esperançoso 
e desesperançado. 
Pouco se falou; os do Norte cedo aprendem a futilidade 
das palavras e o valor inestimável dos atos.
Numa temperatura de sessenta e cinco graus abaixo de zero, não pode um homem ficar muitos minutos na neve
e continuar vivendo. Por conseguinte cortou-se a atrelagem do trenó, e o padecente, enrolado em peles, foi deposto
num leito de ramos. À sua frente rugia um fogo feito
com a própria madeira causadora do desastre. 
Atrás, e parcialmente sôbre êle, estendeu-se uma tenda
primitiva - um pedaço de lona que captava o calor irradiado
e fazia-o convergir de volta em cima dêle - 
ardil bem conhecido de muitos que estudaram Física nas fontes.
Homens que partilharam sua cama com a morte sabem
quando o chamado se faz ouvir. Mason ficara horrivelmente
esmagado. O exame mais superficial o revelava. 
O seu braço direito, a perna e as costas se quebraram;
os membros se lhe paralizaram da cintura para baixo;
e era muito grande a possibilidade de existirem machucaduras internas. 
Seu único sinal de vida era um gemido ocasional.
Esperança nenhuma; nada a fazer. A noite impiedosa
se arrastava - o quinhão de Ruth, o desesperado
estoicismo de sua raça, e Kid Malemute acrescentando
novas rugas ao seu rosto de bronze. 
Em verdade, era Mason quem menos sofria, pois julgava
estar no Tennesse oriental, nas Grandes Montanhas
Fumegantes, onde voltava a viver cenas da infância.
Mais comovedor que tudo era a melodia de seu vernáculo
sulista havia muito esquecido, enquanto êle sonhava 
com os peraus onde nadava, com caçadas de gambá
e incursões em plantações de melancia. Isso era grego
para Ruth, mas o Kid o entendia e sentia-o como só 
pode sentir quem ficou muitos anos afastado de tudo quanto
a civilização significa.

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