quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

CASA TOMADA

Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono.
Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua
ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta.
Irene falava que meus sonhos consistíam em grandes
sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão.
Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite
ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouviamos nossa respiração, a tosse, presentíamos os gestos que
aproximavam a mão do interruptor da lâmpada,
as mutuas e freqüentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia
eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas
do tricô, um rangido ao passar as folhas do album filatélico.
A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha
e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada,
falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho de louça e vidros
para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes
permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos 
para os quartos e para o salão, a casa ficava calada
e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, a noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono. 
É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências.
Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse
a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água.
Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha
ou tal vez no banheiro, porque a curva do corredor,
abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me e veio ao meu lado sem falar nada.
Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram
deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos, apertei o braço de Irene e a fiz correr
comigo até a porta cancela, sem olhar para atrás. Os ruídos
se ouviam cada vez mais fortes, porem surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor.
Agora não se ouvia nada.
- Tomaram esta parte - falou Irene.
O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até 
a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu 
que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô
sem olhar para ele.
- Você teve tempo para pegar alguma coisa? - perguntei-le
inutilmente.
- Não, nada...
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quize
mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho
que ela estava chorando), e saímos assim à rúa. 
Antes de partir sentí pena, fechei bem a porta de entrada
e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum
pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, 
a essa hora e com a casa tomada.

(Este conto foi publicado originalmente no livro "Bestiário" (1951)

Nenhum comentário: