terça-feira, 1 de abril de 2014

SOBRE A UTILIDADE DA ARTE

Porque a arte existe? Quem precisa dela? 
Na verdade, alguém precisa dela?
Estas são questões colocadas não só pelo poeta,
mas também por qualquer pessoa que aprecie arte -
ou, naquela expressão corrente, por demais sintomática
da relação da arte e seu público do século XX - 
o "consumidor".
Muitos fazem essa pergunta a si próprios, e qualquer pessoa ligada à arte costuma dar a sua resposta pessoal.
Alexander Block disse que "do caos, o poeta cria harmonia"
...Puchkin acreditava que o poeta tem o dom da profecia.
Todo artista é regido por suas próprias leis, mas estas 
não são, em absoluto, obrigatórias para as demais pessoas.
De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo
de toda arte - a menos, por certo, que ela seja dirigida ao "consumidor", como se fosse uma mercadoria - é explicar
ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive 
o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar
às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou,
se não for possível explicar, ao menos propor a questão.
Para partirmos da mais geral das considerações, 
é precisso dizer que o papel indiscutivelmente funcional
da arte encontra-se na idéia do conhecimento
onde o efeito é expressado como choque, como catarse.
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E assim, a arte, como a ciência, é um meio de assimilação do mundo, um instrumento para conhecê-lo 
ao longo da jornada do homem em direção ao que
é chamado "verdade absoluta".
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Aquí, porem, termina toda e qualquer semelhança entre
essas duas formas de materialização do espírito criativo
do homem, nas quais ele não apenas descobre, 
mas também cria. No momento, é muito mais importante
perceber a divergência, a divergência, a diferença 
de princípio, entre as duas formas de conhecimento:
o científico e o estético.
Através da arte o homem conquista a realidade de forma subjetiva. Na ciência, o conhecimento que o homem tem
do mundo ascende através de uma escala sem fim, e a cada vez é substituído por um novo conhecimento, cada nova
descoberta sendo, o mais das vezes, invalidada pela seguinte, em nome de uma verdade objetiva específica.
Uma descoberta artística ocorre cada vez como uma imagem nova e insubstituível do mundo, um hieróglifo de absoluta
verdade. Ela surge como uma revelação, como um desejo
transitório e apaixonado de apreender, intuitivamente 
e de uma só vez, todas as leis deste mundo - sua beleza
e sua feiura, sua humanidade e sua crueldade, seu caráter
infinito e suas limitações. O artista expressa essas coisas
criando a imagem, elemento sui generis para a detecção
do absoluto. Através da imagem mantém-se uma conciência
do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada.
Poder-se-ia afirmar que a arte é um símbolo do universo,
estando ligado àquela verdade espiritual absoluta
que se oculta de nos em nossas atividades pragmáticas e utilitárias. 
Para poder penetrar em qualquer sistema científico,
uma pessoa deve recorrer a processos lógicos 
de pensamento, deve chegar a um entendimento 
que requer como ponto de partida um tipo específico
de educação. A arte se dirige a todos, na esperanza
de criar uma impressão, de ser sobretudo sentida,
de ser a causa de um impacto emocional e de ser aceita,
de persuadir as pessoas não atraves de argumentos
racionais irrefutáveis, mas através da energia espiritual
com que o artista impregna a obra. Alem disso, a disciplina
preparatória que ela exige não é uma educação científica,
mas uma lição espiritual específica.
A arte nasce e se afirma onde quer que exista uma ânsia
eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal, ânsia que
leva as pessoas à arte. A arte contemporânea tomou 
um caminho errado ao renunciar à busca do significado da existência em favor de uma afirmação do valor autônomo
do indivíduo. O que pretende ser arte começa a parecer
uma ocupação exêntrica de pessoas suspeitas que afirmam
o valor intrínseco de qualquer ato personalizado. Na criação
artística, porém, a personalidade não impõe seus valores,
pois está a serviço de uma outra idéia geral e de caráter
superior. O artista é sempre um servidor, e está eternamente
tentando pagar pelo dom que, como que por milagre,
lhe foi concedido. O homem moderno, porèm, não quer
fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício. Aos
poucos, vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa
vocação humana...
Quando falo do anseio pelo belo, ideal como objetivo fundamental da arte, que nasce de uma ânsia por esse ideal
não estou absolutamente sugerindo que a arte deva 
esquivarse da "sujeira" do mundo. Pelo contrário! A imagem
artística é sempre uma metonímia em que uma coisa
é substituída por outra, o menor no lugar do maior. Para
referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito. Substituição...
não se pode materializar o infinito, mas é possível
criar dele uma ilusão: a imagem.
O horrível e o belo estão sempre contidos um no outro.
Em todo o seu absurdo, este prodigioso paradoxo alimenta
a propria vida, e, na arte, cria aquela unidade ao mesmo
tempo harmônica e dramática. A imagem materializa uma
unidade em que elementos múltiplos e diversos 
são contiguos e se interpenetram. Pode-se falar da idéia contida na imagem, e descrever a sua essência por meio de palavras. Tal descrição, porém, nunca será adequada.
Uma imagem pode ser criada e fazer-se sentir. Pode ser aceita ou recusada. Nada disso, no entanto, pode ser compreendido através de um processo exclusivamente cerebral. A idéia do infinito não pode ser expressada
por palavras ou mesmo descritas, mas pode ser apreendida
através da arte, que torna o infinito tangível. Só se pode alcançar o absoluto através da fé e do ato criador.
A única condição para lutar pelo direito de criar é a fé
na própria vocação, a presteza em servir e a recusa 
as concessões. A criação artística exige do artista que ele
"pereça por inteiro", no sentido pleno e trágico destas palavras. E assim, se a arte carrega em si um hieroglifo
da verdade absoluta, este será sempre uma imagem do mundo, concretizada na obra de uma vez por todas.
extraído do livro "Esculpir o tempo" de Andrei Tarkovski - diretor do filme "Solaris"
   

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