domingo, 27 de abril de 2014

 O belo oculta-se daqueles que não buscam a verdade,
para os quais ela é contra-indicada. Porém, a profunda
falta de espiritualidade das pessoas que vêem a arte
e a condenam, e o fato delas não estarem dispostas
nem prontas a refletir, num sentido mais elevado,
sobre o significado e o objetivo da sua existência, vêm
muitas vezes mascarados pela exclamação vulgarmente
simplista: "Não gosto disso!", "É tedioso!". 
Não é um argumento que se possa discutir, mas parece
a reação de um cego a quem se descreve um arco iris.
O homem contemporâneo permanece surdo ao sofrimento
do artista que tenta compartilhar com os outros a verdade
por ele alcançada.
Mas o que é a verdade?
Creio que um dos mais desoladores aspectos da nossa
época é a total destruição na conciência da pessoas
de tudo que está ligado a uma percepção consciente
do belo. A moderna cultura de massas, voltada para o "consumidor", a civilização da prótese, está mutilando
as almas das pessoas, criando barreiras entre os homens
e as questões fundamentais da sua existência, 
entre o homem e a consciência de si próprio enquanto
ser espiritual. O artista, porém, não pode ficar surdo 
ao chamado da beleza; só ela pode definir e organizar
sua vontade criadora, permitindo-lhe, então, transmitir
aos outros a sua fé. Um artista sem fé, é como um pintor
que houvesse nascido cego.
E errado dizer que o artista "procura" o seu tema. Este,
na verdade, amadurece dentro dele como um fruto,
e começa a exigir uma forma de expressão. É como um
parto...
O poeta não tem nada de que se orgulhar: ele não é senhor da situação, mas um servidor. A obra criativa é a sua
única forma possível de existência, e cada uma das suas
obras é como um gesto que ele não tem o poder de anular.
Para ter consciência de que uma seqüência de gestos
é legítima e coherente, e faz parte da natureza mesma
das coisas, ele deve ter fé na idéia, pois somente a fé
da coesão a um sistema de imagens (leia-se: sistema de vida) 
E o que são os momentos de iluminação, se não percepções instantâneas da verdade?
O significado da verdade religiosa é a esperança. A filosofia
busca a verdade, definindo o significado da atividade humana, os limites da razão humana e o significado
da existência, até mesmo quando o filósofo chega
a conclusão de que ela é absurda, e de que é vão todo
o esforço humano.
A função específica da arte não é, como comumente
se imagina, expor idéias, difundir concepções ou servir
de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa
para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz
de voltar-se para o bem.
Ao se emocionar com uma obra-prima, uma pessoa começa
a ouvir em si própria aquele mesmo chamado da verdade
que levou o artista a criá-la.
Quando se estabelece uma ligação entre a obra e seu
espectador, este vivencia uma comoção espiritual sublime
e purificadora. Dentro dessa aura que liga as obras-primas
e o público, os melhores aspectos das nossas almas dão-se
a conhecer e descobrimos a nós mesmos, chegando 
às profundidades insondáveis do nosso próprio potencial
e às últimas instâncias de nossas emoções.
Andrei Tarkovski 
trecho extraído do livro "Esculpir o Tempo"
Editora Martins Fontes - 1990

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