quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A sala da delegacia voltou novamente ao seu silêncio primitivo.
Um soldado veio apresentar-se, trocando rápidas palavras com o inspetor.
Um relógio próximo bateu quatro horas. Dos compartimentos do fundo,
chegou um personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas, furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia
uma medalha cravejada de brilhantes. Dirigiu-se ao inspetor: - Raposo,
vou sair: há alguma cousa? / - Nada, Capitão Viveiros. / - E o caso
Jenikalé? Já apareceu o tal "mulatinho"? / Não tenho pejo em confessar
hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos.
Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração,
de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava
cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho
de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação
de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada.
Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte tal vez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus olhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a que
me compare, não sei mesmo se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida;
mas choro agora, choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas não me torna a fazer chorar. Entretanto, isso tudo é uma questão
de semántica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação
injuriosa. Essa reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque
sentia na baixeza do tratamento todo o desconhecimento das minhas
qualidades, o julgamento anterior da minha personalidade que não queriam
ouvir, sentir e examinar. O que mais me feriu, foi que ele partisse de um
funcionário, de um representante do governo, da administração que devia
ter tão perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao
Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.

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