sábado, 16 de novembro de 2019

PREFACIO
(trecho)

Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões
de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens
e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas.
Os primeiros dispunham do verbo, os outros pediam-no
emprestado. Entre aquêles e estes, régulos vendidos,
feudatários e uma burguesia pré-fabricada serviam
de intermediários. Às colônias a verdade se misturava nua;
as metrópoles queriam-na vestida; era precisso que
o indígena as amasse. Como as mães, por assim dizer.
A elite europeia tentou engendrar um indigenato
de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa,
com ferro em brasa, os principios da cultura ocidental,
metia-lhes na bôca mordaças sonoras, expressões
bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes;
depois de breve estada na metrópole, recambiava-os
adulterados. Essas contrafações vivas não tinham mais nada
a dizer a seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres,
de Amterdã lançávamos palavras: partenon!, fraternidade!
e num ponto qualquer da África, da Ásia, labios se abriam:
tenon...nidade! era a idade de ouro. Isto acabou. Às bôcas
passaram a abrir-se sozinhas; as vozes amarelas e negras
falavam ainda do nosso humanismo, mas para censurar
a nossa desumanidade. Escutávamos sem desagrado
essas corteses manifestações de amargura. De início
houve um espanto orgulhoso: que! êles falam por êles
mesmos! Vejam só o que fizemos dêles! Não duvidávamos
que aceitassem o nosso ideal porquanto nos acusavam
de não sernos fieis a êle; por esta vez europa acreditou
em sua missão; havia helenizado os asiáticos e criado
esta espécie nova: os negros greco-latinos. Ajuntávamos
só para nós, astutos: deixemos que se esgoelem,
isso os alivia; cão que ladra não morde.
Surgiu uma outra geração que alterou o problema.
Seus escritores, seus poetas, com incrível paciência
trataram de nos explicar que nossos valôres 
não se ajustavam bem à verdade de sua vida,
que não lhes era possível rejeitá-los ou assimilá-los
inteiramente. Em suma, isso queria dizer: de nós
fizestes monstros, vosso humanismo nos supõe universais
e vossas práticas racistas nos particularizam. 
E nós os escutávamos despreocupados; os administradores
coloniais não são pagos para ler Hegel, aliás leem-no pouco,
mas não precissam desse filósofo para saber 
que as conciências infelizes se emaranham nas próprias
contradições. 
Nenhuma eficácia. Por conseguinte perpetuemos-lhes
a infelicidade, que dela não resultará coisa alguma.
Se houvesse, diziam-nos os peritos, uma sombra 
de reivindicação em seus gemidos, outra não seria
que a de integração. Não se trata de outorgá-la, é claro:
isso arruinaria o sistema, que repousa, como se sabe,
na superexploração. Mas bastaria acenar-lhes com essa
patranha: viriam correndo. Quanto à possibilidade
de revolta, estávamos tranquilos. Que indígena consciente
iria massacrar os filhos da Europa com o fim único 
de se tornar europeu como êles? 
Numa palavra, estimulávamos essas melancolias e não achamos mau, uma vez, conceder o prêmio Goncourt
a um negro. Isto ocorreu antes de 39.
1961. Escutai: "Não percamos tempo com litanias
estéreis ou mimetismos nauseabundos.
Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda à parte onde o encontra,
em tôdas as esquinas do mundo.
Há séculos...que em nome de uma suposta "aventura
espiritual" vem asfixiando a quase totalidade
da humanidade." Êste tom é nôvo. Quem ousa adotá-lo?
Um africano, homem do "terceiro mundo", antigo colonizado.
Acrescenta êle: "a Europa adquiriu uma velocidade 
tão louca, tão desordenada... que arrasta para o abismo,
do qual é melhor que nos afastemos."

Jean Paul Sartre
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ÍNDICE

1 - Da Violência no contexto internacional

2 - Grandeza e fraquezas da espontaneidade

3 - Desventuras da conciência nacional

4 - Sobre cultura nacional, fundamentos recíprocos
     da cultura nacional e das culturas de libertação

5 - Guerra colonial e perturbações mentais

      Série C: Modificações afetivo-intelectuais 
      e perturbações mentais após a tortura 

      Série D: Perturbações psicossomáticas

      Da impulsividade criminal do norte-africano
      à guerra de libertação nacional

dados extraídos da Wikipédia

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