terça-feira, 29 de agosto de 2017

Para mim os dias são cada vez melhores. 
Acabei por aprender muito bem a língua e os meus vizinhos,
os três do lado e os outros mais distantes, quase me olham
como a um deles. Em contato quotidiano com as pedras,
os meus pés descalços familiarizam-se com o chão
e o meu corpo, quase sempre nu, já não receia o sol.
A civilização sai aos poucos de mim e começo a pensar
com simplicidade, a alimentar pouco ódio pelo meu próximo,
a funcionar animalmente, livremente, com a certeza
de que o amanhã é igual ao dia de hoje. Todas as manhãs
o sol se ergue tranquilo, para mim como para toda a gente.
Faço-me descuidado, sereno e amante.
Tenho um amigo natural que todos os dias se aproxima
de mim sem artifício, sem interesse. As imagens coloridas,
os meus trabalhos na mata, surpreendem-no, e as respostas
que dei às suas perguntas instruiram-no. 
Se trabalho, não há dia que não me venha ver. 
Um dia, em que lhe entreguei os meus utensílios e pedi
que tentasse fazer uma escultura, olhou para mim
muito espantado e disse simplesmente, com sinceridade,
que eu não era como os outros homens. 
Foi, tal vez, o primeiro no mundo a afirmar que eu era
útil ao próximo. Criança! Só uma criança pode pensar que um artista é útil.

Paul Gauguin - Noa Noa

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