sexta-feira, 15 de abril de 2016

O portão avermelhado e rústico da mansão surgiu
aberto de par em par. Apeei do cavalo e ofegando de ternura desmedida, entorpecido por um presságio emocionado, acalmando o animal suado, avancei pelo saguão adentro.
Imediatamente, entre o ruído dos cascos, ergueram-se
do interior gritos disonantes e guturais, como se fossem
doentes uivando no meio da fadiga e do delírio.
Não sei explicar como surgiu em mim a sensação
de correntes pesadas acorrentando-me os pulsos 
e os tornozelos até sangrar, mordendo-me ferozmente,
quando vi aquela matilha doméstica. A imagem antropoide
da mãe de Urquizo surgiu instantaneamente na memória,
e invadia-me ao mesmo tempo um presentimento maior
que as minhas forças, era uma espécie de certeza aciaga
de que, minutos depois, teria o meu ser envolto pelas trevas.
Gritei alto.
Nada. Todas as portas da habitação estavam totalmente abertas. Soltei as rédeas do cavalo, vasculhei os corredores,
os pátios e os quartos. E novos grunhidos detiveram-me 
diante de uma escadaria que ascendia ao aposento mais 
sombrio e elevado da casa. Espreitei. Não fazia sentido.
Nenhum sinal de vida, nem um só animal doméstico.
Mãos insólitas deviam ter alterado com astuciosa mudança
de gosto e de todo o senso de ordem e comodidade,
a distribuição usual dos móveis e dos utensílios do lugar.
Saltei precipitadamente os degraus da escada e transpus
o espaço guiado por uma secreta atração, observando
com vagar. Fiquei detido ali com uma aflição inexplicável
e arrepiante. Duvidei por breves segundos e, favorecido
pelos últimos clarões do dia, olhei atentamente para dentro.
Vi, num átimo, o rosto macilento e selvagem 
entre as sombras, mortalmente desfigurado e causando
terror. Ganhei coragem - embora já percebesse tudo, 
oh Deus! - e parei diante da porta, esforçando-me para reconhecer a máscara apavorante.
Era o rosto do meu pai!
Um macaco, sim! Toda a verticalidade truncada e o arrojo
acrobático, todo o jogo de nervos, a expressão facial 
e os gestos, o esqueleto, e até o pelo eriçado. 
O fio sutilíssimo com que é tramada a membrana inconsútil
da espessura matemáticamente exata que o tempo 
e a lógica universal estabelecem, anulam e transpõem
as colunas e o curso da vida!
- Grrrrr!...Grrrr! - grunhiu nervosamente.
Posso assegurar que ele não me reconhecera. 
Movimentou-se com destreza, se posicionando no antro
onde se refugiara e - refém de uma apreensão
verdadeiramente própria de um gorila enjaulado perante
as pessoas que observam e importunam - saltava e grunhia,
arranhava o estuque do covil vazio, sem parar 
de me observar um só instante, pronto para defender-se
ou atacar.
- Meu pai! - supliquei, impotente e débil, e avancei
para abraçá-lo.
Ele suspendeu bruscamente o seu ar diabólico,
desarmando toda a sua feição selvagem e parecia resgatar
num só impulso toda a treva do seu pensamento.
Chegou até mim, calmo e terno, transfigurado em homem,
como porventura se aproximou de minha mãe
no dia em que se abraçaram tão humanamente, até extrair
o sangue com que encheram meu coração e o impeliram
para que pulsasse no compasso da minha fronte 
e dos meus pés.
Mas quando pensei que algo nele se iluminara,
ao conjuro milagroso do amor filial, deteve-se a poucos passos, como que corrigindo o seu ato, no enigma
de uma mente enferma. O seu rosto barbudo, ensaiou
uma expressão desorbitada, distante e enfraquecida
com tal vigor interior que provocou em mim uma crispação
a ponto de virar o olhar, despertando a sensação fria 
de uma realidade completamente transtornada.
Tentei falar-lhe mais uma vez e com todo o ímpeto.
Riu de maneira insana.
- A estrela... - balbuciou. E articulou novos grunhidos.
A angustia e o terror me fizeram suar glacialmente.
Emiti um soluço sentido, contornei a escada e saí daquela
casa. 

Nenhum comentário: