segunda-feira, 3 de novembro de 2014

PROPRIEDADE DO PERDIDO

É minha a inocência
ânfora de cristal tão desvalida
que nada me sugerem seus pedaços

a juventude é minha
e é ainda atávico susurro
rescaldo prévio ou impossível fogo

o rosto do meu pai
tão meu é que acode a meus espelhos
para comprometer-me em seus dilemas

é meu o primeiro salmo
débil embelezado entre as árvores
cerzido com as linhas do esquecimento

meu broto de amor
que era quimera e foi descobrimento
para soltar arroubos como um lastro

meu o muro de deus
com sua gretada e fosca pele de pedras
e suas mil garatujas de receio

e a mão fraterna
tão minha é que surge das ruínas
para estreitar minha mão e exumar-me

tudo o que perdí
é meu irremediavelmente meu
tão distante de mim que é desamparo

Mario Benedetti
tradução:Julio Luís Gehlen

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