segunda-feira, 5 de maio de 2014

A não ser nos termos mais genéricos de uma sensação
de harmonia, como é difícil falar de uma grande obra!
É como se existissem certos parâmetros imutáveis 
a definirem a obra prima e a destacá-la dentre os fenômenos circundantes.
Além disso, do ponto de vista daqueles que a apreciam, pensar o valor de uma determinada obra de arte 
é em grande parte relativo.
Uma obra-prima é um julgamento da realidade,
completo e acabado, e que mantém uma absoluta afinidade
com essa mesma realidade; seu valor encontra-se no fato
de dar plena expressão a uma personalidade humana
em interação com o estírito. Costuma-se pensar
que o significado de uma obra de arte será esclarecido
ao ser a mesma confrontada com as pessoas,
ao se estabelecer um contato entre ela e a sociedade.
Em sentido geral, isso é verdade, mas o paradoxo 
consiste no fato de que, nesse contexto, a obra de arte
se encontra en total dependência daqueles que a recebem,
daquele que é capaz de perceber, ou manipular, 
os fios que a ligam, primeiro, com o mundo em geral, e,
depois, com a personalidade humana em sua relação
individual com a realidade. Goethe está mil vezes certo
quando diz que ler um bom livro é tão difícil 
quanto escrevê-lo. Não convém imaginar que o nosso
ponto de vista e a nossa avaliação pessoais sejam objetivos.
É apenas através da diversidade das interpretações pessoais que pode surgir certo tipo de avaliação
relativamente objetiva. E a ordem hierárquica de mérito
que as obras de arte assumem aos olhos das massas,
da maioria das pessoas, manifesta-se sobretudo
em decorrência do mero acaso: por exemplo,
quando uma determinada obra de arte teve a sorte 
de encontrar bons intérpretes. Ou, ainda, para outras pessoas, o círculo das predileções estéticas
desta ou daquela pessoa pode iluminar menos a obra em si
do que a personalidade do crítico.
A crítica tende a abordar seu tema com o objetivo
de ilustrar uma concepção específica; com muito menos
freqüência, infelizmente, ela já parte do impacto emocional
vivo e direto da obra em questão. 
Para se alcançar uma percepção pura da obra de arte,
é precisso ter uma capacidade de julgamento original,
independente e "inocente".
Andrei Tarkovsky
extraído do livro "Esculpir o Tempo" - textos sobre a produção do cinema

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